Você pode não conhecer o Gnaisse Facoidal de nome, mas com certeza já o avistou. Essa rocha é o principal componente de morros como o Corcovado e o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Ela foi formada há 560 milhões de anos, no ápice de um evento geológico grandioso de colisão e amalgamação continental que durou mais de 350 milhões de anos, e que gerou o Supercontinente Gondwana.
Durante esse processo, as massas continentais se acavalaram, gerando muito calor e pressão. Isso levou à fusão das rochas, que se cristalizaram como granitos. Um desses granitos, ainda submetido a enormes pressões e temperaturas a mais de 20 km de profundidade, sofreu deformação e recristalização, transformando-se em uma rocha metamórfica: o Gnaisse Facoidal.
Por volta de 130 milhões de anos atrás, parte do Gondwana começou se quebrar e afastar devido à deriva continental. Esse movimento abriu o Oceano Atlântico Sul e o terreno onde estava o Gnaisse Facoidal. Ele estava na “fronteira” entre a costa brasileira e a África, e ocupa hoje a Baía da Guanabara.
Assim como o granito que lhe deu origem, o Gnaisse Facoidal é composto principalmente pelos minerais feldspato, quartzo e mica (biotita) e, por vezes, granada. Sua história metamórfica se reflete em seu aspecto característico de arranjo entre os minerais: grandes cristais de feldspato rosado circundado por bandas milimétricas a centimetricas escuras formando uma textura lenticular, semelhante a “olhos” ou facoides. Daí vem o nome Gnaisse Facoidal ou Augen (do alemão “olho”) gnaisse na terminologia científica.
“A mais bela das rochas”, conforme descreveu Charles Darwin em seu caderno, é agora uma Pedra do Patrimônio Mundial.

A Pedra do Patrimônio
O título de Pedra do Patrimônio da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS) é um reconhecimento internacional da sua importância para o patrimônio cultural mundial, já que a distinção é outorgada às “rochas utilizadas em monumentos e construções significantes para a cultura da humanidade”. Em 2024, o Gnaisse Facoidal passou a integrar uma seleta lista de 55 rochas de cinco continentes, algumas tão conhecidas como o Mármore Carrara, da Itália, ou o Calcário Lioz, de Portugal.
Por que Patrimônio Mundial?
O principal motivo da designação é o fato de o Gnaisse Facoidal ter sido a rocha mais utilizada na construção do Rio de Janeiro e Niterói durante quatro séculos, integrando hoje inúmeros sítios do patrimônio cultural material a nível municipal, estadual e nacional, além de outros dois a nível internacional: o Cais do Valongo e a Casa Burle Marx. Também, o Gnaisse Facoidal é uma rocha onipresente no Patrimônio Mundial da UNESCO “Rio de Janeiro: Paisagens Cariocas entre a Serra e o Mar”.
Seu nome mais conhecido entre os canteiros, profissionais que produziam as cantarias, era “Pedra-de-galho” pela sua textura. Entre os arquitetos, era muitas vezes referida como “granito carioca”. Há muitos monumentos no Rio de Janeiro que apresentam o Gnaisse Facoidal, e também outros em outros estados, como antigos degraus no Palácio dos Governadores e a estrutura do Monumento a Tiradentes em Ouro Preto, cidade também Patrimônio Mundial da UNESCO.

Conhecer e divulgar as pedras que compõem os monumentos, as pedreiras de onde foram extraídas, sua história e características geológicas, tecnológicas e como elas se comportam no ambiente construído é fundamental para retardar sua degradação. Ou seja, conhecer e divulgar as características do Gnaisse Facoidal é importante para a conservação desse patrimônio.
Não é só seu uso no patrimônio construído que faz com que esta rocha seja tão importante: ela já foi apelidada de a “mais carioca das rochas”, a protagonista da interligação do Patrimônio Natural e o Patrimônio Cultural do Rio, já que também sustenta os principais monumentos naturais da entrada da Baía de Guanabara, a paisagem inspiradora de artes e da própria cultura carioca. É graças ao Gnaisse Facoidal, mais resistente ao intemperismo que outros gnaisses presentes nos morros e costões, que a paisagem é tão impressionante.
Em consequência, o Gnaisse Facoidal representa a imbricação de natureza e cultura que deu ao Rio o título de Patrimônio da Humanidade, como reconhecimento do valor excepcional da relação intrínseca entre paisagem e sociedade, segundo o critério ‘5’ – fusão criativa entre natureza e cultura, baseado em ideias científicas, ambientais e de design – e ‘6’ – a inspiração para muitas formas de artes e reconhecimento mundial de uma beleza impressionante.
O Gnaisse Facoidal no Patrimônio Cultural
Desde a fundação da cidade do Rio de Janeiro até o século 20, o abundante material rochoso existente foi empregado como material de construção. Era necessário executar obras de infraestrutura e edificar a cidade, e os colonos portugueses tinham tradição na arte da cantaria. Granitos, gnaisses, quartzito e até o diabásio foram aproveitados na construção do Rio de Janeiro, que seria capital da Colônia, do Reino, do Império e da República.
O Gnaisse Facoidal ocorre em uma área de cerca de 200 km2 na Baía de Guanabara, desde a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, estendendo-se em direção nordeste a Niterói, parte de São Gonçalo e parte oeste de Maricá. Esta rocha está exposta nos costões do Rio e de Niterói e em várias ilhas, destacando-se o Pão de Açúcar, monumento natural e Sítio do Patrimônio Geológico mundial da IUGS (2022), publicado no livro “The First 100 IUGS Geological Heritage Sites”
Em consequência, o Gnaisse Facoidal serviu como material de construção desde o início da ocupação até metade do século 20, quando quase todas as pedreiras fecharam. Hoje, existem inúmeros exemplos de sua utilização. Os mais antigos estão nas várias fortalezas em ambos os lados da Baía de Guanabara, como a de Santa Cruz da Barra (1555) e a de São João (1565), erguidas sobre os afloramentos dessa rocha de onde também se extraiu o material para alvenaria. Dos séculos 17 e 18 a rocha foi aplicada na cantaria de templos religiosos, como o Mosteiro de São Bento e edificações administrativas, como o Paço Imperial.
Seu principal uso nos primeiros séculos da ocupação foi rudimentar, como material de aterro ou elementos de obras civis (canos, pontes, enrocamentos, pavimento tipo “pé de moleque”), enquanto em edifícios compunha paredes de alvenaria, cunhais, soleiras e batentes. Já no final do século 18, o Gnaisse Facoidal foi utilizado de forma artística pelo Mestre Valentim, no Portão e Chafarizes do Passeio Público e na fachada da Igreja da Santa Cruz dos Militares.
No século 19, a partir da instalação da Família Real e a corte no Rio de Janeiro, as rochas da cidade foram exploradas a ritmo vertiginoso, conforme relatam os muitos visitantes em seus escritos e imagens. O Gnaisse Facoidal foi largamente usado em obras públicas e nas molduras de portas e janelas, as quais deviam ser em cantaria de acordo aos códigos de posturas.

Entre o final do século 19 e início do 20, no final do Império e no período republicano, o Gnaisse Facoidal tornou-se o principal componente de fachadas e ornamentos, como na Santa Casa da Misericórdia, na Ilha Fiscal, no Edifício da Companhia Docas de Santos, sede do IPHAN-RJ, ou no Museu de Ciências da Terra, dentre muitos outros exemplos.
Além disso, as pedreiras continuavam fornecendo lajes para o calçamento, até hoje visto em diversas ruas da cidade e, posteriormente, ainda forneceriam agregados para a construção por várias décadas. O amplo leque de uso do Gnaisse Facoidal ao longo da história permite hoje observar o desenvolvimento técnico no trabalho da pedra, além dos gostos ou costumes em sua utilização, ao longo dos séculos.
As pedreiras e seus trabalhadores
O Gnaisse Facoidal foi extraído em quase 60 pedreiras, destacando-se, no Rio, a da Ilha das Cobras, a do Morro da Conceição, a de São Diogo, as do Catete, a do Morro da Viúva e as da Urca (Morro do Pasmado e Babilônia) e, em Niterói – São Gonçalo, as de Santa Rosa e Icaraí. Os trabalhadores, inicialmente, foram nativos escravizados e prisioneiros, instruídos por engenheiros militares portugueses. Entre a metade do século 17 e final doséculo 19, foram os africanos escravizados, descendentes e alforriados quem extraiam, transportavam e trabalhavam a pedra. A partir da abolição da escravatura, esse trabalho foi maioritariamente desempenhado por operários brasileiros e imigrantes portugueses e espanhóis.
A rocha, a pedra, o patrimônio
O Gnaisse Facoidal é o fio condutor da história geológica, geomorfológica, arquitetônica, social e cultural de uma cidade que, por tudo isso, é chamada de Cidade Maravilhosa. Essa é a história de uma rocha que virou pedra que virou patrimônio.
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Fonte: abril