Imagine dois irmãos que herdam a mesma variante genética: para um deles, ela aumenta o risco de desenvolver diabetes; para o outro, diminui. A diferença? Em um caso, a variante veio do pai; no outro, da mãe. Esse fenômeno, chamado de “efeito de origem parental”, foi explorado em escala inédita por um estudo publicado na Nature.
Os pesquisadores mapearam mais de 30 variantes genéticas cujo impacto muda conforme o genitor de origem – e em 19 casos, o efeito chega a ser oposto. O trabalho revela uma nova dimensão da herança genética, que vai além da simples soma de genes maternos e paternos.
Tradicionalmente, cada pessoa herda duas cópias de quase todos os genes, e ambas podem estar “ativas” (expressas) ou “inativas” (silenciadas). Mas, em algumas regiões do DNA, apenas uma das cópias funciona, dependendo se foi herdada da mãe ou do pai. Esse mecanismo é conhecido como “imprinting genômico” e já foi associado a doenças raras. É como se uma cópia já viesse “programada” para não funcionar.
A síndrome de Prader-Willi, por exemplo, é causada pela ausência ou falha da cópia paterna no cromossomo 15, o que leva a atraso no desenvolvimento, obesidade e problemas hormonais. Já a síndrome de Angelman, ligada à falta da cópia materna de um segmento da mesma região, provoca atraso motor e cognitivo, convulsões e características comportamentais específicas.
Desde os anos 1990, cientistas defendem que o imprinting tem raízes evolutivas. A chamada “hipótese do conflito parental” propõe que genes paternos tendem a favorecer maior crescimento e demanda de recursos do feto, enquanto genes maternos priorizam economizar energia para futuras gestações, mesmo que isso signifique limitar o crescimento imediato da prole.
O resultado é uma espécie de “cabo de guerra” biológico, que pode deixar marcas sutis no corpo e na saúde ao longo da vida.
Detectar esses efeitos em características comuns – como altura, distribuição de gordura ou metabolismo – sempre foi difícil. Isso porque, para saber de qual genitor veio uma determinada variante, é preciso comparar o DNA da pessoa com o dos pais biológicos.
Esse tipo de dado raramente está disponível em biobancos, grandes bancos de informação genética usados em pesquisas populacionais. Para superar essa barreira, a equipe liderada por Zoltán Kutalik, da Universidade de Lausanne (Suíça), criou um método estatístico capaz de inferir a origem parental de uma variante sem precisar do DNA dos pais.
O algoritmo analisa dados genéticos de qualquer parente disponível (mesmo primos ou tios distantes), combinando pistas do cromossomo X (presente em duas cópias nas mulheres e uma nos homens), do DNA mitocondrial (herdado exclusivamente da mãe) e de padrões de recombinação genética – pontos onde cromossomos “trocam pedaços” durante a formação dos óvulos e espermatozoides, que diferem entre homens e mulheres.
A técnica foi aplicada a quase 109 mil pessoas do UK Biobank, o maior banco genético do Reino Unido. O grupo identificou mais de 30 variantes com efeito de origem parental significativo.
Em 19 casos, houve efeito bipolar: a mesma variante aumentava um traço se herdada de um genitor e o diminuía se herdada do outro. Quase metade dessas variantes estava no cromossomo 11, que contém genes envolvidos no controle do crescimento.
Um exemplo emblemático: uma variante aumentava o risco de diabetes tipo 2 em 14% quando herdada do pai, mas reduzia o risco em 9% quando herdada da mãe.
O estudo também encontrou um caso envolvendo o gene KLF14, que atua na regulação do metabolismo. Quando herdada da mãe, uma de suas variantes estava associada a índice de massa corporal mais alto na infância – mas não no caso de herança paterna.
Para confirmar os achados, os cientistas repetiram as análises com dados de 85 mil pessoas do Biobanco da Estônia e de 42 mil participantes do Estudo Norueguês de Mães, Pais e Filhos, chegando a resultados semelhantes. A replicação aumenta a confiança de que esses efeitos são reais, e não apenas fruto de coincidências estatísticas.
Embora os mecanismos exatos ainda não estejam claros, os autores acreditam que muitos casos de efeito bipolar se alinhem à hipótese do conflito parental. Todos os casos identificados estavam ligados a crescimento ou metabolismo, sugerindo que essa disputa genética afeta, sobretudo, o uso de energia e a alocação de recursos no organismo.
Michael Gabbett, geneticista da Universidade de Tecnologia de Queensland (Austrália), destacou que a grande novidade é a própria abordagem. “A descoberta final de que existe um efeito de origem parental não é particularmente nova, mas a maneira como eles o abordaram realmente estabelece um método para que possamos usar esses biobancos para futuras descobertas”, disse à Nature.
Os pesquisadores reconhecem que não é possível, com os dados atuais, separar totalmente a influência genética da influência ambiental – por exemplo, se parte do efeito vem do fato de um dos genitores criar o filho de forma diferente. Estudos com populações maiores e mais diversas, e que integrem dados de comportamento e ambiente, podem ajudar a responder essa questão.
O método, no entanto, já oferece uma nova ferramenta para investigar a herança genética em doenças comuns e traços complexos. E reforça que a história contada pelo nosso DNA é mais complexa do que a simples mistura de genes maternos e paternos: importa, e muito, de qual lado da família eles vieram.
Fonte: abril