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Estudo utiliza acelerador de partículas para revelar formato de antiga espécie com esqueleto

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“Um penhasco desmoronou, e as criaturas lá embaixo, sepultadas pelo deslizamento de terra, foram pressionadas como flores contra um livro, suas características preservadas em detalhes prodigiosos.” É assim que o jornalista americano Bill Bryson narra a formação do Folhelho de Burgess,  um sítio fossilífero na província canadense da Colúmbia Britânica de onde saíram alguns dos mais remotos indícios de vida animal já encontrados. O material lá encontrado se formou há 508 milhões de anos, o que o torna duas vezes mais antigo do que os primeiros dinossauros.

Não há dúvida de que se trata de um tesouro. Mas desde sua descoberta, em 1911, os paleontólogos se esforçam para entender exatamente o que têm em mãos. As dificuldades decorrem também do fato de que a interpretação dos fósseis é uma tarefa complexa. Bryson compara esse desafio às dificuldades enfrentadas por alguém que, sem jamais ter visto uma flor pessoalmente, se deparasse com os remanescentes ressecados e bidimensionais de uma e assumisse a tarefa de conceber o aspecto da planta viva e saudável, em três dimensões.

A metáfora de Bryson explica um desafio central em estudar os seres macroscópicos pioneiros dos períodos Ediacarano e Cambriano, encontrados em Burgess e em tantas outras jazidas de fósseis com idades similares. Essa biota antiquíssima contém, por exemplo, estruturas que poderiam ser patas mas também fariam sentido se interpretadas como espinhos — e mesmo dados básicos, como o plano corporal (se um animal é radial, como uma água-viva, ou tem simetria bilateral, como nós), permanecem ambíguos. Frequentemente, sequer é possível determinar onde essas espécies se encaixam na árvore da vida.

Em um artigo publicado em abril no periódico Royal Society Open Science, uma equipe formada majoritariamente por brasileiros relata a investigação de mais de 200 fósseis de um animal de nome científico Corumbella weneri, descrito pela primeira vez em 1982 com base em exemplares dos anos 1970 encontrados em uma mina de calcário nos arredores da cidade sul-mato grossense de Ladário, na fronteira com a Bolívia (outro município próximo é Corumbá, de onde saiu o nome latinizado).

A Corumbella é ainda mais antiga que os espécimes do Folhelho de Burgess: viveu na reta final do período Ediacarano, há cerca de 550 milhões de anos. Nessa época, uma biota aquática de criaturas plácidas, com corpo mole e alimentação majoritariamente por filtragem, estava dando os primeiros passos para uma guinada morfológica. No alvorecer do período seguinte, o Cambriano, que teve início há 542 milhões de anos, a evolução das primeiras carapaças, garras e órgãos dos sentidos gerou uma explosão de biodiversidade sem comparação no registro fóssil.

O objetivo da pesquisa era determinar qual seria a forma tridimensional da Corumbella. Isso exigiu o esclarecimento de uma série de confusões entre a morfologia e a tafonomia desse animal centimétrico. O termo tafonomia(do grego taphos, “enterro”) se refere a características do fóssil que foram causadas pelo próprio processo de fossilização, mas não apareciam no organismo original. Já a morfologia (do grego morphé, “forma”) diz respeito à configuração que o organismo realmente tinha.

Sabe-se que a Corumbella era um ser séssil com forma de tubo, com uma extremidade fixada no leito submarino e outra oscilando ao sabor das águas. Seus tecidos moles eram protegidos por um revestimento de anéis rígidos — um exoesqueleto que usava de matéria-prima o carbonato de cálcio que ela própria era capaz de excretar. Ela vivia em grupos numerosos, que cobriam o fundo do mar como um gramado de minhoquinhas com no máximo 10 cm de altura, e formaram os primeiros recifes da história da Terra.

Essa lista de características é consensual, mas há outros traços da Corumbella que vêm sendo objeto de disputa acadêmica nas últimas décadas. A primeira interpretação publicada dos fósseis desse bichinho, ilustrada abaixo, sugeria que ela tinha uma extremidade bifurcada (reconstituição 1, de 1982). Depois, uma releitura propôs que não havia bifurcação, mas que a parte superior era quadrangular em vez de cilíndrica, como uma caixa de pasta de dente (reconstituição 2, feita nos anos 2000).

No artigo publicado pela Royal Society, o primeiro autor Bruno Becker e seus colegas — que incluem Marcello Simões, do Instituto de Biociências (IBB) da Unesp em Botucatu e Lucas Warren, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) no campus de Rio Claro — argumentam que nenhuma dessas versões está correta: ambas confundem tafonomia e morfologia.

A equipe apresenta evidências de que a Corumbella, na verdade, era bem mais simples do que se especula — e vinha enganando os especialistas. “O tubo dela cônico-cilíndrico e feito de anéis justapostos, e muitos dos detalhes que intrigaram os cientistas por décadas na verdade eram marcas de deformação durante a fossilização”, explica Simões (reconstituição 3, de 2025).

Imagem de evidências de que a Corumbella, na verdade, era bem mais simples do que se especula, exemplo de 1982, anos 2000 e 2025.

Tomografias de ponta e experimentos práticos são destaques

Organismos mortos se preservam como fósseis apenas quando acabam presos em meio às camadas de sedimento que se acumulam no leito marinho, como uma lasanha geológica. E é natural que animais mais frágeis acabem esmagados pelo peso desse material, o que gera deformações, rachaduras e vincos.

De acordo com Becker e seus colegas, tanto a suposta bifurcação presente no modelo de 1982 como a Corumbella quadrangular proposta nos anos 2000 se basearam erroneamente nessas deformidades, interpretando-as como características que a Corumbella tinha em vida, e não como resultado de incidentes durante o processo de fossilização.

O trabalho contou com tomografias de alta resolução de cinco dentre os 200 fósseis, realizadas com os feixes de radiação produzidos pelo acelerador de partículas Sirius, construído pelo CNPEM em Campinas (SP). As imagens resultantes foram processadas com uma mãozinha de uma inteligência artificial capaz de identificar e isolar qual parte do material analisado é rocha e qual é o fóssil em si — um trabalho de decupagem que normalmente seria feito no olho e tomaria um bocado de tempo. “Até onde eu sei, esse foi o primeiro artigo [da área de paleontologia] que usou processamento de imagem com machine learning. E é uma coisa que eu quero continuar desenvolvendo”, diz Becker.

Para complementar, Becker também realizou experimentos com animais anelídeos contemporâneos da ordem Sabellida. A exemplo da Corumbella, eles são tubos e vivem no mar, mas têm a vantagem de não estarem extintos há meio bilhão de anos e estarem disponíveis no Museu de Zoologia Comparativa da Universidade Harvard, onde Bruno trabalha atualmente. Em laboratório, ele aplicou pressão sobre esses animais em laboratório, para entender, na prática, como o exoesqueleto se quebra. Resultado: as rupturas geradas artificialmente seguiram padrões similares aos encontrados nos fósseis.

A paleontóloga Miriam Pacheco da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) — que não participou deste trabalho específico, mas é uma das maiores especialistas do país na Corumbella e no Ediacarano — considerou essa abordagem exemplar: “O trabalho tira o máximo das técnicas disponíveis hoje, como o síncrotron [o acelerador de partículas Sirius], que é o ouro da ciência nacional. Isso é muito bom para a ciência brasileira do ponto de vista da independência.”

Miriam também explica que o uso de anelídeos vivos para resolver dúvidas sobre a tafonomia da Corumbella foi um complemento bem-vindo aos métodos de observação tradicionais da paleontologia. “Às vezes, a gente acaba esbarrando em hipóteses conflitantes que só a experimentação, junto com a observação, ajuda a testar.”

Morfologia da Corumbella ajuda a posicioná-la na árvore da vida

O infográfico abaixo demonstra como as fissuras nessa casquinha calcária podem levar erroneamente à interpretação de que a Corumbella é quadrangular. “O melhor exemplo para entender isso é um conduíte — aquele tubo de plástico que se põe dentro da parede para passar fiação”, explica Lucan Warren da Unesp, um geólogo especialista em sedimentologia. “Aperte um conduíte e veja o que acontece: ele vai ceder em quatro pontos, criando uma linha mediana que originalmente não existia.” Entenda no passo-a-passo abaixo:

Imagem de um infográfico que demonstra como as fissuras nessa casquinha calcária podem levar erroneamente à interpretação de que a Corumbella é quadrangular.
(Equipe de Arte ACI/Reprodução)

Marcello Simões reforça o raciocínio: “As supostas arestas quadrangulares são produto da compactação. Ao colapsar, os tubos podem se abrir lateralmente ou sobrepor anéis, criando a ilusão de faces planas. Porém, quando bem preservados ou vistos em três dimensões na microtomografia, os tubos são sempre cônico-cilíndricos.”

Discutir a geometria da Corumbella é importante porque esse dado ajuda a determinar a que ramo da árvore da vida o animalzinho pertence. Caso ela tivesse simetria radial e quadrangular, como no modelo dos anos 2000, ela se aproximaria mais do grupo das atuais águas-vivas, os cnidários. Já a forma cilíndrica é inconclusiva: pode até indicar simetria bilateral, que é o esquema básico dos corpos de anfíbios, répteis e mamíferos. No momento, não é possível determinar suas afiliações filogenéticas com precisão.

“Trabalhando com dados limitados, é possível que nunca saibamos classificar a Corumbella. Mas, tão importante quanto estabelecer o que ela é, é estabelecer o que ela não é. Testar e descartar interpretações incorretas é crucial, pois elas confundem nossa visão da história evolutiva.”, diz Frances Dunn, pesquisadora do Museu de História Natural da Universidade Oxford e perita em fósseis do Ediacarano.

“Isso é precisamente o que Becker-Kerber e colegas fizeram neste artigo. Eles concluem que nenhuma das hipóteses precisas de afinidade se sustenta, mas sugerem semelhanças com outros fósseis tubulares de idade semelhante – preparando o cenário para um trabalho comparativo, a fim de estabelecer as verdadeiras afinidades desses animais antigos.”

Na avaliação de Miriam Pacheco, porém, o artigo erra ao se concentrar apenas na refutação das sugestões anteriores para a Corumbella — sem explicitar qual é, porém, a sugestão do grupo para o animal. “O artigo inteiro ficou na missão de rebater outros modelos, sem propor o próprio modelo. (…) Há um título muito convicto, que fala na morfologia original de Corumbella, mas não há uma proposta, não há o desenho de uma reconstituição morfológica.”

A fauna ediacarana só começa a se apresentar em peso no registro fóssil mais para o final do período, por volta de 550 milhões de anos atrás, quando bichinhos como a Corumbella estrearam os exoesqueletos crocantes de carbonato de cálcio — aumentando as chances de fossilização. Essa fauna tubular é encontrada em jazidas de vários lugares do mundo e permite conclusões mais certeiras.

A aparição de exoesqueletos é um indício importante de que a ecologia pacífica do Ediacarano estava dando lugar a interações mais violentas, disputas por espaço e uma mudança na química dos oceanos. Alguns fósseis de Cloudina — um animal da mesma época da Corumbella e com características similares, como a forma de tubo e o revestimento biomineralizado — contêm marcas de perfuração. Sinal de que já havia predadores petiscando por aí, e de que o exoesqueleto pode ter evoluído parcialmente como uma forma de blindagem.

“O surgimento de esqueletos rígidos no final do Ediacarano é visto como prelúdio da explosão Cambriana, quando predadores mais ativos e diversificados já aparecem abundantemente”, explica Marcelo Simões. “O próximo desafio é esclarecer a posição evolutiva da Corumbella dentro da árvore dos animais”, diz.

“Também precisamos aplicar técnicas geoquímicas para confirmar de que mineral eram feitos esses primeiros esqueletos biomineralizados. O objetivo maior é responder à pergunta central: como e por que os animais começaram a produzir estruturas biomineralizadas justamente nesse momento da história.”

Calcula-se que 55% dos genes humanos atuais já estivessem presentes no ancestral comum hipotético de todos os animais, que viveu há cerca de 650 milhões de anos, pouco antes da Corumbella. Ou seja: mesmo o mais peculiar dos seres pré-históricos ainda esconde em si um pedaço imenso de nós.

Fonte: abril

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