Saúde

Estudo revela que pesquisa sobre segurança do agrotóxico glifosato é retirada após 25 anos

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  • Um artigo que atestava a segurança do uso do glifosato, o herbicida mais comum no mundo, foi retratado (“despublicado”) 25 anos depois de sua divulgação inicial. A decisão foi tomada após revelações de conflitos de interesse e violações éticas: cientistas da Monsanto, a companhia que desenvolveu o produto, participaram secretamente da escrita do estudo, sem que isso fosse revelado ao público.

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    A segurança do glifosato é um tópico em debate. A substância é aprovada pela maioria das agências reguladoras mundo afora, incluindo a brasileira Anvisa, que aponta não haver evidências sobre possíveis riscos do seu uso na agricultura. No entanto, um órgão da OMS classificou o agrotóxico como “provavelmente cancerígeno em humanos” em 2015, causando uma cisão na comunidade científica.

    A pesquisa em questão foi publicada no ano 2000 no periódico Regulatory Toxicology and Pharmacology, parte do catálogo da editora Elsevier. Ela era assinada por três cientistas: Gary Williams, então pesquisador da Faculdade de Medicina de Nova York em Valhalla; Robert Kroes, da Universidade de Utrecht nos Países Baixos; e Ian Munro, da empresa canadense Cantox Health Sciences International. Destes, apenas o primeiro ainda está vivo.

    O estudo não trazia um experimento novo – trata-se de um artigo de revisão, que reuniu evidências de outras pesquisas publicadas até então sobre o assunto. Na conclusão, o texto dizia que “o Roundup [nome comercial do glifosato vendido pela Monsanto] não apresenta riscos à saúde humana”. Desde então, ele foi citado centenas de vezes por outros cientistas, ou seja, era uma publicação relevante.

    A história ganhou um novo capítulo em 2017, enquanto um processo contra a Monsanto (que hoje faz parte da Bayer após ser adquirida) acontecia nos EUA. Um grupo de pessoas com câncer alegava na Justiça que o glifosato era o responsável por causar seus quadros de linfoma. Na batalha jurídica, centenas de documentos internos da companhia foram divulgados ao público, incluindo e-mails de funcionários.

    Uma troca de mensagens era especialmente reveladora: um representante sugeria que os cientistas da Monsanto poderiam escrever artigos sobre a segurança do glifosato e convidar pesquisadores de fora para apenas fazer edições finais e assinar os estudos. “Lembre-se que foi assim que fizemos com o Williams Kroes & Munro, 2000”, diz o e-mail, referindo-se ao estudo agora retratado (você pode ler a mensagem na página 203 deste documento).

    Ou seja: o documento comprova que o estudo foi escrito por cientistas da empresa responsável por vender o agrotóxico – um claro conflito de interesses que não era apresentado em nenhum lugar do artigo. Pelo contrário: o texto era assinado por cientistas independentes, sem qualquer menção à Monsanto. Isso constitui uma grave violação ética do processo científico.

    Na época, a notícia repercutiu em jornais, especialmente os focados no noticiário científico, mas não houve nenhuma medida prática. Isso só começou a mudar recentemente: em setembro, uma dupla de pesquisadores publicou uma pesquisa relembrando e analisando o caso

    Naomi Oreskes, historiadora da ciência da Universidade Harvard, e Alexander Kaurov, da Universidade de Wellington da Nova Zelândia, descobriram que o artigo fraudulento continuou a ser citado por outros cientistas e a aparecer como referência em documentos oficiais de governos e em sites como a Wikipedia, mesmo anos após a revelação de sua autoria secreta e antiética.

    Oreskes e Kaurov também enviaram uma carta ao editor-chefe do periódico Regulatory Toxicology and Pharmacology, onde o estudo de 2000 foi publicado, perguntando por que o artigo seguia disponível oito anos após as revelações graves. Foi o gatilho para que a revista começasse um processo de revisão do artigo.

    A decisão saiu agora: em uma nota, Martin van den Berg, editor-chefe do periódico e pesquisador na Universidade de Utrecht, diz que a retratação ocorreu por causa de “sérias preocupações éticas” em relação a sua real autoria. O único autor vivo do estudo, Gary Williams, não se pronunciou sobre o assunto até o momento, nem deu esclarecimentos ao periódico.

    Não só: a nota de retratação também mostra que também o conteúdo do artigo era problemático. A revisão feita pelos autores incluía várias pesquisas feitas pela própria Monsanto e que sequer estavam publicadas em periódicos sérios, enquanto ignorava várias outras pesquisas independentes. Era uma análise enviesada. 

    Glifosato é seguro?

    O herbicida que protagoniza essa polêmica é o agrotóxico mais usado do mundo e também no Brasil. Ele é aplicado para controlar espécies de plantas daninhas em várias culturas, como na soja – que, na sua versão transgênica, é resistente ao produto. 

    Nas últimas décadas, porém, estudos feitos com células e animais em laboratório levantaram a preocupação de que ele poderia fazer mal à saúde e causar câncer.

    No entanto, a maioria das agências reguladoras permite o seu uso, afirmando que não há evidências suficientes de prejuízos à saúde nas doses baixas em que é aprovado. É o caso da Environmental Protection Agency (EPA), dos EUA, da Agência Europeia das Substâncias Químicas e da Anvisa. Por aqui, o órgão brasileiro publicou, em 2019, uma nota técnica que diz que “o glifosato não apresenta características mutagênicas, teratogênicas e carcinogênicas, não é desregulador endócrino e não é tóxico para a reprodução”.

    Mas um baque veio em 2015, quando a Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer (IARC, na sigla em inglês), um órgão da OMS, incluiu a substância na lista de coisas “provavelmente cancerígenas”. O grupo chegou a essa conclusão com base em evidências “suficientes” de estudos com animais e em evidências “limitadas” de estudos epidemiológicos, envolvendo pessoas que tiveram contato com altos níveis da substância. 

    Na prática, a lista reconhece que existem evidências relacionando a substância ao câncer – mas não leva em conta a dosagem, as circunstâncias de uso e outros fatores envolvidos. A categoria de “provavelmente cancerígenos” também conta com gás mostarda, esteroides anabolizantes, infecção pelo vírus HPV, consumo de carne vermelha e bebidas quentes (acima de 65 graus).

    A classificação da OMS não alterou a aprovação da substância na maioria dos países, mas acendeu um debate intenso na comunidade científica e mesmo em agências reguladoras e governos mundo afora. Alguns países estudam proibir o agrotóxico, apostando na cautela. Essas medidas, porém, enfrentam resistência, já que o herbicida é amplamente usado no mundo todo e é muito útil para combater plantas daninhas.

    É em meio a esse debate acalorado que a retratação do artigo de 2000 vem. Ele não é, nem de longe, o único feito sobre o tema; pelo contrário: há dezenas de estudos que analisam a segurança do glifosato. Mas era um dos mais relevantes: a análise recente de Naomi Oreskes e Alexander Kaurov mostrou que o artigo, agora despublicado, já ficou entre os 0,1% mais citados deste campo de pesquisa.

    Em nota, a Bayer (que agora é dona da Monsanto), diz que “o consenso entre os órgãos reguladores de todo o mundo, que realizaram suas próprias avaliações independentes com base nas evidências, é que o glifosato pode ser usado com segurança conforme suas instruções e não é cancerígeno”, afirmou a empresa em comunicado.

    Fonte: abril

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