Monstros são… ruins. O consenso moderno é que um monstro é uma criatura assustadora e ameaçadora. Alguns dicionários adicionam definições além do mundo da fantasia: pessoa extremamente cruel e desumana, algo feio, horroroso, anormal, contrário às leis da natureza. Dá para dizer, com tranquilidade, que “monstro” é uma palavra com significado pejorativo.
Mas nem sempre foi assim, e o conceito moderno do que é um monstro atrapalha a leitura de clássicos da literatura da Grécia Antiga, que não compartilham da mesma definição de “monstruoso” dos leitores do século 21.
Quem levantou essa bola foi a pesquisadora brasileira Camila Aline Zanon, que resolveu estudar os monstros da mitologia e literatura grega ao invés de focar nos deuses e heróis. Em seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Zanon pesquisou a caracterização dos monstros em três obras poéticas clássicas: Teogonia, de Hesíodo, Hino Homérico a Apolo e Odisseia, de Homero.
Ela, que já havia concluído um mestrado em arqueologia, se interessou pelos monstros depois de começar a trabalhar com livros infantojuvenis, e encontrar tantas criaturas fantásticas nas páginas de livros para crianças e adolescentes.
Em sua tese “Onde vivem os monstros: criaturas prodigiosas na poesia hexamétrica arcaica“, publicada e premiada em 2017, Zanon explica que palavras usadas para falar dos monstros, como teras e pelór, se referem a coisas extraordinárias e espantosas, não monstruosas.
Zanon, que atualmente é pós-doutoranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conversou com a Super para falar sobre sua pesquisa e as dificuldades de traduzir literatura antiga. No caso das obras da Antiguidade Clássica, há uma distância temporal de quase 3000 anos entre o leitor atual e o autor. “Muitos dos elementos culturais, históricos, sociais e religiosos dessas obras exigem explicações adicionais e, muitas vezes, é difícil traduzir um conceito com precisão.”
Um bom exemplo que ela dá dessas dificuldades de tradução é o termo mythos, que em grego antigo podia significar algo que é dito ou uma conversa, sem necessariamente ter uma implicação fantasiosa. Traduzir essa palavra como “mito” pode não ser a escolha mais fiel, apesar das similaridades. “Tornar uma obra antiga acessível a um público moderno sem distorcê-la é sempre um desafio e nem sempre é possível.”
Leitura anacrônica dos clássicos
Tanto teras quanto pelór, que muitas vezes são traduzidas como “monstro” ou “monstruoso”, são usadas para se referir aos monstros, aos heróis e até aos deuses dos poemas gregos clássicos. “O termo teras pode ser usado tanto para a cabeça da Górgona [a Medusa, com cabelos de cobra, era uma górgona] quanto para um arco-íris, pois ambos são compreendidos como sinais divinos”, explica Zanon. Já pelór era usado para indicar algo enorme.
Na poesia hexamétrica arcaica, a tradição de literatura oral que engloba Hesíodo e Homero, a realidade empírica e a esfera divina estão profundamente conectadas. É por isso que aquilo que sabemos da mitologia grega vem, principalmente, de obras literárias como a Teogonia. Várias das criaturas consideras monstruosas da mitologia grega estão associadas a esse universo divino e são imortais.
Nas narrativas analisadas por Zanon, os monstros têm protagonismo, e não só como antagonistas. Na Teogonia, Zeus se alia aos três Ciclopes, filhos da deusa Gaia, e aos três irmãos deles, os Centímanos. O primeiro trio de monstros tem só um olho, no meio da testa, e os Centímanos são ainda mais diferentes, com 100 braços e 50 cabeças.
Na Antiguidade e na Idade Média, deformidades físicas são associadas aos monstros. Mas isso não quer dizer que, porque eles têm 100 braços e 50 cabeças, os Centímanos são criaturas maléficas e cruéis. Eles são essenciais na guerra para acabar com a tirania cósmica dos Titãs, que tem muito mais jeitão de vilões.
Quando as características dessas criaturas são traduzidas e interpretadas como “monstruosas”, o leitor contemporâneo coloca seus preconceitos e opiniões em cima de personagens que, por eles mesmos, podem não ter nada de pejorativo. Mas de onde vieram esses vieses?
“A concepção moderna de “monstro” começou a se consolidar entre os séculos 18 e 19″, explica Zanon. Os termos em grego e latim que são traduzidos como “monstro”, ligados a advertências, prodígios e presságios dos deuses, não tem muita relação com o significado atual da palavra, que fala de figuras da ficção ou da cultura popular – mesmo que ela tenha surgido do latim monstrum.
Em sua tese, Zanon defende que a categoria da “monstruosidade” é definida culturalmente. Na Antiguidade Clássica, os monstros estavam associados à esfera divina e não eram necessariamente malvados, e sim criaturas enormes e extraordinárias. Já na modernidade influenciada pelo cristianismo, a categoria “monstro” vira algo bem distante da esfera divina, associada a Deus e sua bondade, e passa a representar o mal e o inferno.
Essa ideia comum sobre os monstros não existe na Grécia Antiga. A cultura deles também tem um mundo inferior, mas que não é necessariamente ruim. O Hades existe nas narrativas como uma força importante para a estruturação do cosmos, e não como um lugar de maldade e destruição.
Em alguns casos, as criaturas ditas monstruosas da Antiguidade agem como o que nós chamaríamos de “monstros”. É o que acontece com o Ciclope Polifemo, que na Odisseia começa a comer todos os parceiros de viagem de Odisseu (também conhecido como Ulisses na versão latina do nome). Mas a categoria moderna de “monstro” não tem nada a ver com Polifemo ser um antagonista, e impôr ela na narrativa não ajuda a entender as motivações da criatura gigante com um olho só.
Para Zanon, as palavras usadas para falar das características monstruosas poderiam ser traduzidas como “prodígio”, de uma forma que mantém a ideia original do grego de uma criatura fora do comum sem ser anacrônico e usar uma referência posterior de monstruosidade. “Enorme” ou “extraordinário” também podem ser alternativas mais fiéis do que “monstro”.
“‘Prodígio’ é o termo que melhor reflete, em português, o campo semântico dos vocábulos em grego antigo que designam essas criaturas, pertencentes ao domínio da adivinhação”, defende Zanon. Nenhuma palavra do grego antigo tem um significado parecido com o que é atribuído a “monstro” hoje em dia.
Se essas obras estão tão distantes de nós que até as palavras que julgamos conhecer têm significados complexos, por que ler os clássicos? “Ler uma obra da Antiguidade Clássica é, para mim, o que há de mais próximo da experiência de viajar no tempo, junto com a arqueologia”, afirma Zanon. “Embora distantes no tempo, também nos reconhecemos nessas obras porque herdamos muito da Antiguidade.”
Não é por isso que os clássicos devem ser romantizados, como se a Grécia Antiga fosse uma era de ouro da civilização. “Essas obras também nos ajudam a reconhecer os fracassos da história humana: escravização, misoginia, desigualdade, fome, pobreza, exploração, guerra.” Os monstros das narrativas clássicas podem não ser tão monstruosos assim, mas essas obras ainda podem nos ajudar a entender as monstruosidades modernas – e sonhar um futuro com menos monstros.
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Fonte: abril