Desde o século 19, a construção de grandes barragens ao redor do mundo tem transformado paisagens, rios e sociedades. Agora, uma nova pesquisa aponta que essas estruturas alteraram algo ainda mais fundamental: a posição dos polos geográficos da Terra (e, consequentemente, o eixo de rotação do planeta).
Publicado na revista Geophysical Research Letters, o estudo liderado por Natasha Valencic, doutoranda em geologia, geofísica e ciências planetárias na Universidade Harvard, mostra que o represamento de grandes volumes de água deslocou o eixo de rotação do planeta em mais de um metro desde 1835.
O fenômeno é conhecido como “deriva polar verdadeira” — um processo no qual a crosta terrestre se move em relação ao eixo de rotação do planeta, à medida que a massa distribuída na superfície se reorganiza.
Embora a Terra gire de forma constante, sua rotação não é perfeitamente estável. Os polos geográficos, que marcam o eixo de rotação do planeta, não estão ancorados em posições fixas. Eles migram levemente com o tempo, influenciados por fatores como o derretimento de calotas polares, o deslocamento de massas oceânicas e o movimento das placas tectônicas.
A nova pesquisa revela que as ações humanas também entraram nesse rol de influências. Ao construir represas e formar grandes reservatórios de água doce, a humanidade redistribuiu massa suficiente sobre a crosta terrestre para provocar uma mudança mensurável na orientação do planeta. A água que antes fluía pelos oceanos passou a ser armazenada em áreas continentais, criando um novo equilíbrio de forças gravitacionais.
Segundo os pesquisadores, é como se a Terra fosse uma bola de basquete em rotação. Ao colar um pedaço de argila em um dos lados, a bola se inclina ligeiramente para compensar o novo peso — o mesmo ocorre com o planeta. Esse deslocamento é o que define a deriva polar.
Com base em dados do banco Global Reservoir and Dam (GRanD), os cientistas analisaram o impacto de 6.862 barragens construídas entre 1835 e 2011. Juntas, essas estruturas armazenam um volume de água suficiente para encher duas vezes o Grand Canyon (EUA). Esse volume de massa deslocada foi suficiente para causar o movimento do eixo terrestre em 1,1 metro ao longo do período.
Os pesquisadores identificaram duas fases distintas nesse processo. A primeira ocorreu entre 1835 e 1954, quando a maior parte das grandes barragens foi construída na América do Norte e na Europa. Esse padrão fez com que o Polo Norte migrasse cerca de 20 centímetros em direção ao meridiano 103,4° Leste, uma linha que atravessa partes da Rússia, da Mongólia e da China.
A partir de 1954, com o avanço da engenharia civil e o interesse de países emergentes em explorar o potencial hidrelétrico, o foco da construção de barragens deslocou-se para regiões como o Leste da África e o Sudeste Asiático. Essa nova distribuição da massa provocou uma mudança na direção da deriva polar, empurrando o Polo Norte cerca de 57 centímetros para o meridiano −117,5° Oeste, que passa pelo oeste da América do Norte e pelo Pacífico Sul. Ao longo do tempo, essa trajetória se desenhou de forma irregular e oscilante, influenciada pela localização, escala e cronograma de cada obra construída.
Para entender o impacto dessa redistribuição de massa com precisão, a equipe utilizou um modelo físico detalhado que combina teorias sobre variações gravitacionais e estabilidade rotacional. O modelo, conhecido como PREM (Preliminary Reference Earth Model), considera diferenças na densidade e elasticidade das camadas internas da Terra, e foi complementado por parâmetros como a infiltração de água nos solos próximos aos reservatórios.
Mesmo excluindo cerca de 28% do volume represado global — principalmente por se tratar de pequenos reservatórios que armazenam volumes inferiores a 0,1 km³ — os resultados permaneceram estáveis. Os pesquisadores testaram o impacto desses menores reservatórios e concluíram que, após a inclusão dos 6 mil maiores, os efeitos sobre o eixo rotacional já estavam consolidados. Isso mostra que as represas de grande escala são as principais responsáveis pela mudança.
A pesquisa também revelou uma consequência importante, mas frequentemente negligenciada: o represamento artificial de água provocou uma queda temporária no nível global dos oceanos. Entre 1900 e 2011, as barragens analisadas foram responsáveis por uma redução de 2,2 centímetros no nível do mar. Embora essa diminuição seja pequena se comparada à elevação causada pelo derretimento de geleiras e pela expansão térmica dos oceanos, ela representa um fator de distorção nas estimativas climáticas se não for devidamente considerada.
Valencic destacou que a localização das represas também afeta o padrão de elevação dos mares em diferentes regiões. Em outras palavras, o impacto de uma barragem sobre o nível do mar varia de acordo com onde ela está — e isso altera a “geometria” da elevação global dos oceanos.
A taxa média de deslocamento polar causada por represamento mais que triplicou ao longo do século 20: passou de 0,3 centímetro por ano na primeira metade do século para 0,94 centímetro por ano na segunda. Essa aceleração acompanha o boom de grandes projetos hidrelétricos realizados após 1950, especialmente em países como China, Índia, Brasil e Etiópia.
O estudo também corrige estimativas anteriores que subestimaram o papel das barragens na deriva polar. Um levantamento feito em 2008 havia calculado uma média de deslocamento de −0,15 cm/ano para leste e −0,79 cm/ano para o norte. Os dados atualizados apontam, na verdade, para −0,3 cm e −0,23 cm por ano, respectivamente. Essa diferença é relevante porque permite reavaliar a contribuição de outros fatores, como o derretimento das calotas polares, a extração de águas subterrâneas e a redistribuição de massas oceânicas. Ignorar o impacto das barragens leva a uma superestimação dos efeitos naturais sobre o eixo de rotação.
Além disso, os cientistas mostraram que a influência das barragens não agiu sozinha. Na segunda metade do século 20, a redistribuição de massa causada pelos oceanos — em resposta à mudança no volume de água — também passou a exercer um papel importante, quase equiparado ao dos reservatórios, no traçado final da deriva polar.
Fonte: abril