Cresci no bairro paulistano da Água Branca, em uma vila operária na várzea do Rio Tietê, construída no começo do século 20 nos arredores da Vidraçaria Santa Marina. Atrás das chaminés e fornos, uma ferrovia cruza a Av. Santa Marina. Quatro cancelas compridas – com pintura zebrada, luzes amarelas piscantes e uma campainha estridente – interrompem os carros para os trens passarem.
Em geral, são comboios comuns, recheados de gente com destino a Jundiaí ou à Estação da Luz. Mas, volta e meia, vêm duas ou três locomotivas rangendo em ritmo de hipopótamo, puxando vagões de soja. Para o bebê Bruno, esses eram os dias felizes. Faziam o mundo parecer feito de Lego. Eu acenava para os maquinistas; queria ser um deles quando crescesse.
Haja imaginação. Nos anos 1990, as margens da ferrovia eram repletas de lixo, entulho e galpões; o ar ficava tomado de fuligem e cheiro de borracha queimada. Nos vagões da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), assaltos e tráfico eram rotina, e os surfistas de trem pegavam caronas perigosas no teto dos comboios.
Em 1997, o grupo de rap Rapaziada da Zona Oeste (RZO) cantou: “Me lembro de um irmão, troço chato. Subia, descia por sobre o trem, sorria. Vinha da Barra Funda há dois anos todo dia. (…) Se levantou e encostou naquele fio, tomou um choque – subúrbio, para morrer, é mole.”
Em comparação a essa época, os trens paulistas atuais são um conto de fadas com ar-condicionado. Mas são exceção.
Como um todo, a malha ferroviária brasileira beira o inexistente. De acordo com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), todos os trilhos do Brasil, somados, dão 30.660 km, contra 1,7 milhão de km de malha rodoviária. São 3,1 metros de ferrovia para cada km² do território nacional – contra os 15 m/km² da Argentina e 150 m/km² dos EUA.
A extensão, vale dizer, não é tão maior que a de antigamente. Em 1940, o comprimento total da malha era de 34.252 km. Nos anos 1960, alcançamos um auge de 38.287 km. Acontece que a população e a economia do País também eram menores, o que significa que os trens eram responsáveis por uma porcentagem muito maior dos deslocamentos de passageiros e carga. Em 1940, as ferrovias levavam 62% das mercadorias do País – em 1968, a participação relativa havia caído para 14,7%.
Um segundo fator é o estado de conservação: no pós-2ª Guerra, apesar do recorde de quilômetros, uma parte razoável da infraestrutura ferroviária já estava dilapidada, decadente – o auge da manutenção e confiabilidade das estradas de ferro brasileiras rolou no comecinho do século 20, ainda que a malha dessa época fosse menor que a atual. Entre 1900 e 1914 – início da 1ª Guerra –, o Brasil ganhava mais de 900 km de trilhos por ano.
Um terceiro ponto é que os trens não preenchiam só necessidades práticas: também faziam parte do imaginário popular e do tecido social.
Vide o futebol: Charles Miller era filho playboy do diretor da São Paulo Railway, a ferrovia que levava café do interior do estado para o Porto de Santos. O inglês é creditado como paizão do futebol nacional – ainda que já rolassem peladas em Curitiba em 1875, duas décadas antes de Charlinho dar as caras por aqui.
A verdade é que o esporte não chegou em Pindorama nas mãos de um só herói: um sem número de imigrantes desembarcaram aqui com a bola no pé, e apresentaram o futebol aos operários das ferrovias, que então o levaram o jogo consigo Brasil adentro.
O Sport Club Rio Grande, primeiro clube do país, treinava em um terreno da ferrovia gaúcha que ligava Porto Alegre a Uruguaiana. O Ponte Preta, agremiação mais antiga em atividade contínua, tem esse nome por causa de uma ponte de madeira em Campinas (SP) impregnada pela fuligem das locomotivas à vapor – que acabou revestida de piche para disfarçar a cor.
Então, o que aconteceu? Por que não existem mais comboios fazendo conexões tão óbvias quanto a ponte aérea Rio-São Paulo? De partida, a geografia do Brasil não é ideal para ferrovias.
Um trecho razoável do litoral consiste em uma faixa estreita murada por uma serra de escarpas íngremes, que dificulta a conexão entre o planalto e os portos lá embaixo – muitos rios do Sul e do Sudeste, inclusive, correm para o interior.
Por séculos, o lombo de burro foi o único jeito de descer. Nosso status de colônia de exploração também não ajudou. O objetivo dos portugueses era extrair recursos naturais e levá-los de navio para a Europa, o que não gerava estímulo para ferrovias que conectassem diferentes regiões do País entre si e favorecessem o desenvolvimento econômico.
O final do século 19 foi a tempestade perfeita: D. Pedro II era genuinamente interessado no desenvolvimento tecnológico do País; industriais como o Barão de Mauá precisavam que o Brasil largasse sua herança colonial para fazer dinheiro; e a libertação tardia dos escravizados – nós fomos o último país da periferia do Ocidente a abolir esse horror – modernizou a economia. As relações diplomáticas com os ingleses, que construíram ferrovias mundo afora e lucravam com elas, alcançaram o auge.
Apesar disso, só as estradas de ferro associadas ao café davam dinheiro: boa parte do Brasil ainda não produzia nem exportava mercadoria suficiente para justificar a implantação de trens em larga escala.
Parlamentares bairristas, interessados em construir traçados irracionais para sua própria conveniência e em beneficiar seus currais eleitorais, reivindicavam quilometragem em vez de qualidade – e havia uma pressão generalizada para que as empresas reduzissem tarifas perfeitamente justas, o que as deixava sem caixa para operar as ferrovias satisfatoriamente (muito menos expandi-las ou modernizá-las).
O equipamento foi ficando obsoleto, as viagens se tornaram cada vez mais demoradas e as ferrovias falidas passaram para as mãos do Estado, que não conseguia nem queria mantê-las.
Ou seja: os carros, caminhões e rodovias que tomaram o País dos anos 1950 em diante – uma tendência simbolizada pela gestão JK, pela implantação de fábricas de automóveis ao ABC paulista e pela inauguração de Brasília, com seus bolsões de estacionamento e raras faixas de pedestre – não precisaram competir com as ferrovias, porque elas já nasceram em condições desfavoráveis, e entraram em decadência muito antes disso.
“Não é incomum encontrarem-se ainda entre os brasileiros explicações de cunho francamente conspiratório”, escreve o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, da UFMS, “segundo as quais o triunfo das rodovias teria sido obtido graças a um verdadeiro complô, envolvendo, numa vasta trama de corrupção, os governos e as grandes empresas petrolíferas e automobilísticas (todas estrangeiras) – complô pelo qual se teria deliberadamente deixado as ferrovias à míngua de recursos”.
A realidade é muito mais tediosa: no pós-guerra, a flexibilidade e o preço mais baixo dos caminhões serviram muito melhor às necessidades de um país gigantesco e com uma indústria ainda humilde – infelizmente ao custo da tragédia ambiental dos motores à combustão. Prova disso é que a Vale, hoje, usa ferrovias para levar sua produção homérica de minério de ferro aos portos. Quando o trem é a melhor solução, é inevitável que ele dê as caras.
O problema é que trilhos como esses ainda servem ao mesmo fim que interessava aos portugueses: levar nossos recursos naturais para fora. E é difícil argumentar que repetir o passado tornará o futuro melhor.
Reestabelecer e expandir nossa rede ferroviária não é só uma questão de adicionar mais quilômetros de trilhos – mas de pôr esses trilhos a serviço e ao alcance da população e do desenvolvimento do Brasil, muito além da exportação de minério ou soja.
Principais referências: capítulo de livro “Notas sobre a experiência das ferrovias no Brasil”, de Paulo Roberto Cimó Queiroz; artigo “Expansão e crise das ferrovias brasileiras nas primeiras décadas do século 20”, de Ivanil Nunes; livro História das ferrovias brasileiras, de Paulo Boiteux.
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Fonte: abril