A Ilha da Queimada Grande fica a 36 quilômetros do litoral sul de São Paulo, na altura da Barra do Una e Peruíbe. Ela é coberta pela Mata Atlântica e não tem nenhuma praia.
Nunca ouviu falar desse lugar? Talvez você o conheça pelo apelido mais famoso: Ilha das Cobras, lar de 4 mil serpentes.
A Queimada Grande é o local com a maior concentração de serpentes no país: são 45 por hectare (um hectare corresponde a 10 mil metros quadrados, do tamanho de um campo de futebol). No mundo, ela leva a medalha de prata nesse quesito – a campeã é a ilha chinesa de Shedao, que abriga 20 mil serpentes.
Diferente de outras ilhas do Brasil, a Queimada Grande não é um destino turístico, como a Ilha Grande ou a Ilha do Mel. Pelo contrário: seu acesso é proibido e exclusivo para pesquisadores autorizados pelo ICMBio, órgão federal que administra a conservação de ambientes brasileiros.
Vamos entender a história desse lugar, quais espécies vivem por lá – e que tipo de pesquisa é feita com elas.
A origem da ilha
O primeiro registro histórico da Queimada Grande remonta a 1532, durante a expedição do português Martim Afonso de Souza. A ilha permaneceu inabitada até o final do século 19, quando a Marinha do Brasil instalou um farol por lá. Mas os faroleiros, coitados, enfrentavam o risco de ataques de cobras.
Para controlar a população de serpentes, a Marinha frequentemente ateava fogo na vegetação. Segundo o Instituto Butantan, que estuda a região desde 1911, foi isso que deu origem ao nome “Queimada Grande”.
Desde a automação do farol, ainda na década de 1920, não há mais residentes permanentes na ilha. O desembarque de turistas é proibido, com acesso restrito a profissionais da área ambiental. Desde 1985, a ilha é protegida como Unidade de Conservação Federal.
Mas, afinal: como uma ilha inteira é tomada por cobras?
No Pleistoceno, época geológica que começou há 2,58 milhões de anos e terminou 11 mil anos atrás (praticamente ontem na história da Terra), ocorreu a última era glacial do planeta. O mundo esfriou e o nível do mar baixou mais de 100 metros em relação aos padrões atuais (a água foi para as várias geleiras que surgiram no período).
Em algumas regiões, o mar ralinho conectou o continente com porções de terra que antes eram cercadas por água. Com o tempo, a vegetação e os animais litorâneos passaram a explorar e habitar esses espaços.
Quando as temperaturas voltaram a subir, o nível do mar cresceu junto. O resultado foi que muitas espécies ficaram isoladas em ilhas – e isso afetou diretamente a seleção natural.
Em Queimada Grande, o isolamento geográfico do litoral paulista aconteceu há 11 mil anos. Mas esse não é um caso único – pelo mundo, é comum que ilhas desertas sejam dominadas por serpentes. Nesses lugares, a fauna é geralmente pobre em predadores, permitindo que suas populações cresçam numa velocidade maior em comparação com as que ficaram no continente.
Nesse cenário, espécies de pequeno porte e alta fecundidade costuamm levar vantagem. O que nos leva à pergunta: quem são as moradoras de Queimada Grande?
Ninho de cobras
As duas principais espécies que habitam a ilha são a jararaca dormideira (Dipsas mikanii) e a jararaca-ilhoa (Bothrops insularis).
A jararaca-ilhoa é endêmica da ilha: ou seja, só é encontrada lá. Ela se diferenciou da jararaca comum, por exemplo, justamente por causa das pressões seletivas do isolamento geográfico – o que conferiu a ela algumas características bem peculiares.
O tamanho da ilhoa varia de 50 centímetros a um metro. Ela é capaz de viver em árvores, característica que as irmãs vindas do continente não compartilham. Essa habilidade facilita a caça de aves – sua principal refeição. É comum observá-las em palmeiras típicas da ilha, perto dos cocos, esperando que os pássaros venham se alimentar deles para abocanhá-los.
Os pássaros vítimas da ilhoa são visitantes desavisados da ilha, que pousam ali em épocas de migração. As aves que moram por lá aprenderam a sobreviver à serpente.
Pesquisadores do Butantan identificaram a jararaca-ilhoa no início do século 20: a descrição formal da espécie rolou em 1921 pelo herpetólogo Afrânio do Amaral. Essa espécie tem um veneno potente, capaz de matar um ser humano em até seis horas após a picada.
Tamanho é o poder da ilhoa que já foi dito no passado que o seu veneno seria o mais letal do mundo. Mas não é verdade. “Ela é tão venenosa quanto a jararaca aqui do continente”, explica a pesquisadora Karina Nunes Kasperoviczus Braz, do Laboratório de Ecologia e Evolução (LEEV) do Instituto Butantan.
As pesquisas na ilha – e os desafios do lugar
Karina contou à Super que os estudos em Queimada Grande se dividem em três grandes áreas: ecológica, biologia molecular e reprodução. O Butantan analisa as cobras (e seus venenos) para testar, por exemplo, o desenvolvimento de uma novos fármacos. Mas esse tipo de pesquisa precisa acontecer simultaneamente a trabalhos sobre o habitat das espécies e a conservação delas.
A cientista reforçou também a importância de entender a biologia reprodutiva dessas serpentes, para que seja possível criá-las em cativeiro. A ideia é criar um “estoque” da população. “Assim, caso aconteça algum problema na ilha, a gente conseguiria reintroduzir esses animais.”
Por “problema”, entende-se algum desequilíbrio causado por fenômenos climáticos, falta de alimentação e, claro, a ação humana. Queimada Grande sofre com invasões ocasionais. Há pessoas que se arriscam por lá para praticar a pirataria animal – ou seja, o comércio ilegal das serpentes.
“Eu mesma, há uns 10 anos, fui abordada e ofereceram dinheiro por cada exemplar”, diz Karina. Os bandidos perguntaram se o grupo da cientista, que voltava de uma expedição na ilha, não teria trazido nenhum exemplar na bagagem, para que fossem vendidos no continente.
Fonte: abril