Berwick-upon-Tweed é uma cidade litorânea com 12 mil habitantes. Seu nome tem a ver com a localização: ela fica acima da foz do rio Tweed, que tem 156 quilômetros de extensão e delimita parte da fronteira entre a Inglaterra e a Escócia.
Berwick é a cidade mais ao norte da Inglaterra. Mas a cidade também já pertenceu à Escócia. E à Inglaterra. E à Escócia. E à Inglaterra…
Pois é: Berwick já mudou de nacionalidade 13 vezes. Por séculos, escoceses e ingleses brigaram pelo controle da região, dada à sua importância econômica. Vamos entender essa história.
Vaivém
Berwick pertencia ao Reino da Nortúmbria (651 d.C.–954 d.C.), que ficava no norte da ilha da Grã-Bretanha. A Nortúmbria foi um dos sete reinos que, mais tarde, deram origem à Inglaterra (qualquer semelhança com Game of Thrones não é mera coincidência: o escritor George R.R. Martin usou essa história como base para a mitologia de Westeros).
A Nortúmbria nasceu da união de dois reinos menores: Bernicia ao norte e Deira ao sul. A partir do século 10, essa configuração mudou. O recém-fundado Reino da Inglaterra ficou com Deira. E o Reino da Escócia, criado no século anterior, abocanhou a porção norte, Bernicia.
A partir daí, Berwick passou a ser território escocês. Foi, aliás, um dos dois primeiros burgos reais da Escócia (burgos eram divisões administrativas – em geral, cidades muradas).
Era um lugar próspero: ali funcionava um dos maiores portos da Grã-Bretanha, com um comércio intenso de lã para as feiras de Flandres, no noroeste da França. No século 13, um bispo inglês chegou a dizer que Berwick era a “Alexandria do norte”, em referência à importante cidade egípcia no Mediterrâneo.
A localização e a riqueza de Berwick, porém, colocavam a cidade no olho do furacão entre Inglaterra e Escócia, que disputaram territórios anos a fio. Berwick era alvo de invasões, saques e cercos. Mesmo em acordos de paz, a região era usada como moeda de troca entre os dois reinos. “A cidade foi uma bola de ping-pong por séculos”, disse à BBC Derek Sharman, historiador de Berwick.
Uma das disputas mais sangrentas aconteceu em 1296. Na época, Escócia e França formaram aliança em uma guerra contra a Inglaterra. Quando o rei escocês John Balliol invadiu o território inimigo, o rei inglês Eduardo I capturou Berwick em resposta. As tropas de Eduardo deixaram a cidade em ruínas e dizimaram os artesãos e comerciantes que ali viviam.
A partir daí, os ingleses deram início às obras de fortificação de Berwick. Os muros foram depois concluídos pelos escoceses quando eles recuperaram o controle da região. O vaivém só terminou em 1482, quando os ingleses dominaram Berwick em definitivo.
Em 1707, Inglaterra e Escócia se uniram (junto com País de Gales e Irlanda do Norte, eles formam hoje o Reino Unido). Berwick, porém, só se juntou oficialmente após uma lei de 1746. Por quase três séculos, de 1482 a 1746, Berwick funcionou como uma espécie de reino britânico semi-independente.
Guerra com a Rússia?
Em 1966, uma história curiosa sobre Berwick começou no jornal britânico The Guardian e, depois, se espalhou na imprensa mundial.
Em visita a Berwick, um correspondente londrino do Pravda, o jornal do partido comunista da União Soviética, teria firmado um acordo de paz com o então prefeito da cidade, Robert Knox, que falou: “diga ao povo russo em seu jornal que eles podem dormir tranquilos.”
Foi tudo uma brincadeira, claro. Berwick nunca esteve em conflito com a Rússia. Esse mito tem origem no século 19, durante a Guerra da Crimeia.
Em 1853, quando a rainha inglesa Vitória escreveu a declaração de guerra ao Império Russo e ao extinto Império Otomano, teria assinado como “Vitória, Rainha da Grã-Bretanha, Irlanda, Berwick-upon-Tweed e todos os Domínios Britânicos” (lembre-se: Berwick sempre operou num esquema semi-independente). Três anos depois, o Tratado de Paris pôs fim ao conflito. Vitória, porém, teria deixado a cidade de fora do documento.
Na prática, isso faria com que Berwick jamais tivesse feito as pazes com os russos. Mas essas assinaturas jamais foram comprovadas. Não deixa, porém, de ser um exemplo do tamanho da autonomia da cidade.
Berwickenses
Séculos de disputa territorial e de uma administração pouco dependente da coroa britânica fizeram com que Berwick se tornasse uma espécie de “ilha isolada” do restante da Grã-Bretanha – nos bons e maus sentidos.
É uma cidade mais pobre que o restante do norte da Inglaterra (a atividade portuária não é a mesma de outrora). Além disso, há o preconceito de ambos os países: os ingleses consideram Berwick um pedaço de terra da Escócia; os escoceses acham o oposto.
Apesar de oficialmente pertencer à Inglaterra, o legado escocês é presente. Por há existem bancos e outras instituições do país do kilt. Além disso, os times de futebol e rugby da cidade jogam em ligas da Escócia.
Mas, apesar dos problemas e da aparente crise de identidade (ou por causa disso), muitos habitantes de Berwick nutrem um forte sentimento de nacionalidade própria. Muitos ali se identificam como “berwickenses” antes de dizerem se são ingleses ou escoceses.
A cidade, afinal, resistiu a séculos de ataques, destruições e mudanças de fronteira – e seus moradores têm muito orgulho disso.
Fonte: abril