Saúde

Descubra como identificar e neutralizar as substâncias eternas que podem ser tóxicas

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m julho deste ano, 24 ministros de países europeus se reuniram na Dinamarca para tirar sangue. Não era uma campanha de doação: os políticos foram testados para verificar a presença de PFAS, uma classe de substâncias indestrutíveis, em seus corpos.

A humanidade usa há décadas esses químicos sintéticos, nas mais variadas indústrias. Hoje, eles estão em objetos tão diversos quanto panelas, chips, esmaltes e pesticidas. Alguns são comprovadamente tóxicos, capazes de causar câncer e danos ao fígado. A maioria, porém, é uma incógnita: não há estudos conclusivos sobre possíveis impactos na saúde. Poucas dessas substâncias são proibidas ou reguladas.

O resultado do teste dos ministros saiu em outubro: todos testaram positivo para pelo menos uma molécula de PFAS em seu sangue. Metade deles apresentava concentrações em que riscos à saúde não podem ser descartados.

O encontro fez parte de uma discussão da União Europeia sobre como regular essas substâncias, e o resultado do exame não foi bem uma surpresa. Nos EUA, uma pesquisa que testa regularmente o sangue de americanos desde 1999 concluiu que 99% das pessoas têm PFAS no sangue, em maior ou menor grau (1). Não há dados abrangentes para o Brasil, mas nada indica que por aqui seja diferente.

As PFAS duram um bocado (já vamos explicar por quê). Não sabemos ao certo por quanto tempo, já que elas só existem há menos de um século, mas estima-se que seja por muitos milhares de anos. Por isso, foram apelidadas de “substâncias químicas eternas”.

Substâncias sintéticas que duram para sempre, estão no sangue de todo mundo e podem causar câncer. Parece a sinopse perfeita de uma história de terror. De fato, o tema é urgente. Vamos entender o tamanho do problema – e se há como combatê-lo. 

Tudo em todo lugar 

“PFAS” é a sigla em inglês de “substâncias per e polifluoroalquílicas”, um variado grupo de produtos químicos criados na década de 1940. Dependendo da definição adotada, existem mais de 10 mil delas, todas com uma coisa em comum: ligações carbono-flúor.

Relembrando as aulas de química: moléculas são formadas quando átomos compartilham elétrons. O flúor é o elemento mais eletronegativo da tabela periódica – ou seja, o que tem maior tendência a atrair os elétrons de seu vizinho. Isso faz com que a ligação carbono-flúor seja uma das mais fortes da química orgânica.

Colagem, em fundo preto, feita com imagens de um pincel com uma lata de tinta, um extintor de incêndio e uma embalagem de álcool gel.
(Caroline Aranha/Getty Images/Montagem sobre reprodução)

Por causa desse super bonder microscópico, as PFAS são extremamente estáveis, resistentes ao calor, hidrofóbicas (repelem água) e lipofóbicas (repelem gordura). E essas características são muito úteis para a indústria.

As PFAS são onipresentes: estão em roupas, carpetes e revestimentos resistentes a manchas; na maquiagem à prova d’água e algumas embalagens de comida; em tintas, fertilizantes e espumas anti-incêndio usadas por bombeiros; no fio dental, alguns absorventes e em baterias de lítio.

É graças às PFAS que o ovo não gruda no fundo da panela antiaderente e que a tela do seu smartphone não fica (tão) engordurada mesmo com as deslizadas frequentes do seu dedo, por exemplo. A lista continua: em vários outros itens, as PFAS até não são adicionadas de propósito, mas acabam integrando o produto final porque já estavam na matéria-prima. 

Elas também têm usos médicos: revestem cateteres e próteses que precisam deslizar pelo nosso corpo e protegem as embalagens dos medicamentos, por exemplo. Há inclusive PFAS na forma de gás: o R134a é usado em bombinhas para asma e também em aparelhos de ar condicionado e geladeiras. Nessa última aplicação, elas são uma alternativa que se popularizou nas últimas décadas em substituição aos CFCs, os gases que destroem a camada de ozônio e que, por isso, foram abandonados nas últimas quatro décadas. 

Mas há um problemão nessa história. Uma vez liberadas no ambiente – o que pode acontecer durante a produção, o uso ou o descarte dos objetos –, as PFAS não se degradam. A ligação carbono-flúor é forte demais para ser quebrada pela radiação solar (no processo chamado “fotólise”), quase nenhum microrganismo as “come” e elas não reagem com praticamente nada. Daí a imensa longevidade dessas substâncias.

Hoje, é facinho encontrar esses sintéticos no solo, nas águas e no ar do mundo todo. Locais próximos às fábricas costumam ser mais contaminados, mas as PFAS já foram detectadas até em áreas remotas do Ártico, da Amazônia e da Antártida. 

E, claro, elas chegam aos seres vivos. Centenas de espécies já testaram positivo para as substâncias eternas, incluindo pinguins e ursos polares, e elas se acumulam ao longo da cadeia alimentar – predadores apresentam maiores concentrações em seus corpos (já que comem bichos temperados com PFAS). Humanos, vale lembrar, estão no topo da cadeia.

O que nos leva à pergunta: quais impacto essas moléculas podem ter para o meio ambiente e, principalmente, para a saúde pública global? 

Jogo de panelas

Você conhece o primeiro e mais famoso PFAS do mundo: o Teflon, cujo nome científico é PTFE (prepare-se: serão muitas siglas parecidas nesta reportagem). Ele foi descoberto pela multinacional americana DuPont em 1938 e se tornou um ícone das cozinhas desde então, já que a comida não gruda nas panelas por causa das propriedades impermeáveis das moléculas. 

Em 1999, porém, um fazendeiro que morava próximo à fábrica da DuPont processou a empresa porque suas vacas morriam aos montes – a suspeita era de que a água do riacho da região estava contaminada pelos rejeitos da empresa. A longa batalha jurídica que se seguiu revelou que a companhia usava um PFAS chamado ácido perfluorooctanoico (PFOA) em uma das etapas de produção do Teflon. O mais chocante: a DuPont e a 3M (que produzia PFOA) sabiam que essa substância era altamente tóxica, mas esconderam esse fato do público por décadas.

O caso terminou com multas e indenizações milionárias e rendeu uma longa investigação do New York Times, além do filme O Preço da Verdade (2019). O caso do Teflon mostrou ao mundo que as PFAS podem, sim, ser tóxicas.

Colagem, em fundo cinza, feita com imagens de balas toffel, um tubo de silicone e um tubo de spray.
(Caroline Aranha/Getty Images/Montagem sobre reprodução)

Hoje, o PFOA é banido. O Teflon, que por si só é uma PFAS, segue sendo produzido, mas usando outros ingredientes. Ele é considerado seguro. Mas o que dizer das outras milhares de substâncias eternas? 

Nos últimos 20 anos, algumas delas já foram associadas a maiores chances de câncer nos rins, testículos e próstata, à infertilidade e à malformação fetal; a danos ao sistema imunológico e alterações no sistema endócrino; a obesidade, diabetes e colesterol alto, além de outros problemas. A lista é longa. 

As PFAS também passam pela placenta e contaminam o leite materno, o que gera um alerta duplo. Além disso, conseguem atravessam a barreira hematoencefálica, que protege nosso o cérebro, com consequências desconhecidas.

Você pode estar se perguntando: essas substâncias deveriam ser proibidas, não?

Aí vem um porém. A maioria dos estudos que mostram malefícios são do tipo epidemiológico, envolvendo pessoas expostas a altas concentrações de PFAS, como trabalhadores de indústrias ou moradores que vivem próximo a fábricas. Outros estudos usam modelos animais, que também recebem doses grandes.

Analisar os impactos das substâncias para a maioria das pessoas, que são expostas a doses baixíssimas no dia a dia, é muito difícil – não há como isolar apenas essa variável e traçar associações a partir dela. Além disso, não sabemos se diferentes meios de exposição são igualmente danosos. Tocar em superfícies com PFAS já é problemático? Os níveis encontrados na água potável são toleráveis? 

A maior fragilidade, contudo, é que existem milhares de PFAS – e só algumas, como o PFOA e o PTFE, são bem estudadas. Não sabemos se as outras causam algum tipo de dano à nossa saúde. Ainda há poucos testes. 

Por ora, as moléculas mais estudadas são as chamadas “de cadeia longa”: por conterem mais ligações carbono-flúor, são mais resistentes e, por isso, as mais problemáticas [veja no infográfico abaixo]. No entanto, algumas pesquisas recentes mostram que mesmo as de cadeia curta escondem males silenciosos.

Gráfico, em fundo amarelo, com a fórmula química dos PFAS.
(Caroline Aranha/Superinteressante)

Por causa dessas fragilidades nos estudos, há pouca munição para justificar uma regulação mais ampla. Apesar disso, especialistas concordam que o nível de evidências já é preocupante o suficiente para agirmos. “É algo que se acumula. Mesmo expostos a doses baixas, as concentrações são crescentes”, diz Maria Carolina Rodrigues, pesquisadora da UFRJ, que participou de uma revisão sobre os impactos das PFAS.

Dada a repercussão do tema, várias empresas, entre elas Apple e McDonald’s, comprometeram-se a eliminar voluntariamente o uso das PFAS em seus produtos nos próximos anos (embora nem sempre expliquem como farão isso).

Mas não dá para depender apenas da boa vontade da iniciativa privada – até porque uma estratégia comum tem sido trocar PFAS de cadeia longa, mais vilanizadas, por moléculas de cadeia curta, como se isso fosse certeza de resolução do problema (talvez não seja). É por isso que, cada vez mais, discute-se a regulação delas.

Contra-ataque 

No âmbito global, a Convenção de Estocolmo – um acordo assinado por mais de 150 países para combater poluentes persistentes – regula apenas três PFAS: o PFOA (banido desde 2019), o PFHxS (também proibido) e o PFOS (uso limitado). 

Regulações mais abrangentes, porém, avançam a passos lentos – muito por conta do lobby da indústria, que teria de se reinventar (e possivelmente diminuir o seu lucro, ao menos no começo) para substituí-las. Para várias aplicações, ainda não há alternativas óbvias para as PFAS. 

Mesmo assim, dado o nível crescente de evidências científicas, o cerco está se fechando. Nos EUA, o governo Biden estabeleceu um limite rígido para seis tipos de PFAS na água potável: apenas quatro partes por trilhão, o menor nível que os testes atuais conseguem detectar. 

Em 2025, Trump cancelou a regra para quatro das seis substâncias – mas manteve a restrição para o PFOA e o PFOS, os dois mais estudados e reconhecidos como tóxicos (apesar de a produção deles ter sido banida há anos, todos os que já foram fabricados continuam circulando por aí porque são, bem, eternos). A partir de 2031, toda estação de tratamento americana deverá remover esses químicos da água potável.

Colagem, em fundo cinza, feita com imagens de uma embalagem de pizza, um tubo de spray e uma embalagem de rimel.
(Caroline Aranha/Getty Images/Montagem sobre reprodução)

O processo padrão de purificação da água não elimina as PFAS, mas já existem técnicas para isso, como a filtragem de carbono: usa-se um tipo de carvão ativado bem poroso para adsorver (reunir na superfície do material) as substâncias, que então podem ser separadas e armazenadas. Trata-se de um processo complexo e caro – a EPA, agência ambiental americana, estima que a implementação das tecnologias custe US$ 1,5 bi anuais às estações de tratamento, que estão processando o governo na Justiça para tentar impedir a mudança.

Cientistas pesquisam diferentes maneiras de retirar a PFAS do ambiente. Um estudo recente descobriu que algumas bactérias que vivem em solos contaminados com essas substâncias se adaptaram e conseguem quebrar as poderosas ligações de carbono-flúor para se alimentarem. Cultivar essas linhagens pode oferecer um novo método, embora isso ainda esteja no campo da especulação.

Mas a verdade é que ainda não há uma maneira em grande escala de remover todas as PFAS geradas nos últimos 80 anos. A contaminação é, em grande parte, irreversível. O foco, então, tem sido em diminuir o ritmo de produção de mais substâncias para tentar frear o problema.

Algumas medidas em nível local já foram aprovadas. O pequeno estado americano do Maine (1,4 milhão de habitantes) foi o pioneiro: em 2021, baniu a produção da maioria dos produtos químicos eternos, com poucas exceções, a partir de 2030. 

Colagem, em fundo preto, feita com imagens de uma embalagem de fio dental e um saco de pipoca de microondas.
(Caroline Aranha/Getty Images/Montagem sobre reprodução)

O esforço mais impactante vem da União Europeia. Desde 2023, o bloco discute proibir a produção, a venda e a importação de quase todas as PFAS, seja qual for o nível de perigo conhecido. O plano apresentado pela Alemanha, Dinamarca, Holanda, Noruega e Suécia prevê algumas exceções – como na área da saúde – e um bom tempo de transição, mas ainda é uma medida considerada radical, já que o banimento valeria inclusive para aplicações em que ainda não há substitutos óbvios. (O teste do sangue dos ministros, narrado no começo deste texto, foi uma jogada de marketing para defender a regra).

O bloco argumenta que é melhor pecar pelo excesso de zelo do que correr riscos, e que a proibição vai obrigar empresas a inovar e a investir em pesquisas para descobrir novas substâncias. Isso já acontece hoje: depois que o PFOS foi reconhecido como tóxico, a 3M passou a produzir uma espuma contra incêndios sem flúor. Se a norma europeia de fato avançar, podemos esperar por mais descobertas do tipo nos próximos anos.

Já o Brasil está atrasado na discussão: no País, aplicam-se apenas as restrições da Convenção de Estocolmo. Um projeto de lei para criar uma regulação nacional abrangente tramita no Congresso desde 2023.

Por aqui, aliás, faltam inclusive dados de monitoramento para verificar o quanto de PFAS circula na natureza brasileira e em nossos corpos. “Não dá para saber qual é o tamanho do problema. Os trabalhos que temos ainda são pequenos e não representam o País todo”, diz Cassiana Montagner, professora da Unicamp que liderou o primeiro estudo a identificar as substâncias em rios de São Paulo.

Enquanto as regulações não saem, o que podemos fazer para limitar nossa exposição às substâncias eternas? A verdade é que não muito. Você já deve saber que não se pode deixar panelas antiaderentes no fogo por muito tempo sem comida dentro – e que elas devem ser descartadas quando o fundo estiver danificado ou descascando. Tudo isso ajuda a diminuir as chances de intoxicação.

Mas, infelizmente, não dá para evitar por completo as PFAS de todos os outros itens que você viu retratados nesta reportagem. Essas substâncias chegaram para ficar – para sempre. Que as resoluções internacionais e nacionais, então, avancem para que as próximas gerações tenham cada vez menos contato com elas. 

Fonte: (1) Estudo NHANES, do CDC dos EUA.

Fonte: abril

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