Tudo em Dubai parece girar em torno de ocupar o primeiro lugar: o prédio mais alto do mundo, o maior shopping, a piscina mais profunda. Ali, os limites parecem não existir.
Esse pensamento seguia comigo enquanto eu percorria a estrada que liga a cidade ao Rub al-Khali, o maior deserto de areia contínuo do mundo, que conecta os Emirados Árabes Unidos, Omã, Iêmen e Arábia Saudita. É ali que está a Reserva de Conservação do Deserto de Dubai, onde é possível embarcar em um safári para observar a fauna e a flora nativas, além de mergulhar na cultura beduína.
Povos nômades que viveram nos desertos da Península Arábica por séculos, os beduínos desenvolveram um profundo conhecimento ligado à sobrevivência no deserto, da criação de camelos ao uso dos falcões para caça, além da leitura das estrelas e a descoberta de propriedades curativas das plantas. Nos dias de hoje, embora muitos tenham se estabelecido em áreas urbanas, suas tradições seguem preservadas nas vestimentas, celebrações, hospitalidade e identidade cultural árabe.
O trajeto de 40 km até o safári, feito em van ou veículo 4×4, reserva algumas cenas que não estampam o folder de propaganda do país e acabam revelando um lado menos elogioso do destino. Um deles é a carcaça do maior shopping do mundo, ainda maior que o Dubai Mall, cujo projeto foi abandonado durante a pandemia. A outra é uma montanha feita de entulho de obra, boa parte dela vinda do Palm Jumeirah, a ilha artificial mais famosa de Dubai que abriga o icônico hotel Atlantis.
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O que talvez tenha sido a paisagem mais surreal da estrada foram as pistas de corrida de camelos. Domesticados há milhares de anos, os animais podem ser vistos sendo transportados pelas rodovias em pequenos caminhões – apelidados de “camel uber” – até as pistas de corrida, centros veterinários e fazendas onde são criados e treinados para competir no entretenimento mais tradicional do país.

Como se o esporte não fosse curioso o suficiente, os camelos ainda são controlados remotamente por jóqueis-robôs: as rédeas dos animais são acionadas à distância por um treinador. No passado, os camelos eram cavalgados por crianças, por serem mais leves, mas a prática foi proibida no país em 2001. O camelo vencedor pode render ao treinador prêmios como carros, grandes quantias de dinheiro e até mesmo barras de ouro.
Após observar as singularidades que os arrabaldes de Dubai têm a oferecer, a van embicou em uma rua onde qualquer grandiosidade ou luxo definitivamente desaparecem, abrindo espaço para que o visitante vislumbre um emirado mais rural, com casas simples, sem ornamentos e pequenos sítios onde são criadas cabras, ovelhas e vacas. Poucos minutos depois, chega-se ao ponto de partida do safári.
Paramentados para o deserto
Ao descer da van, ganhamos garrafas d’água e os guias se mobilizam para nos ajudar a colocar o shemagh, o tradicional lenço árabe que é enrolado ao redor da cabeça para proteger do sol e da areia do deserto.
Respeitando as tradições locais, os lenços possuem diferenças a depender do gênero de quem o veste. Homens usam a versão tradicional, com padrão xadrez vermelho e branco, já as mulheres têm a opção de escolher entre oito cores em tons terrosos. Tal diferenciação no traje se dá por razões culturais seculares, na qual o povo beduíno podia diferenciar de longe qual o gênero da pessoa estava a caminhar pelo deserto.
Devidamente trajados e hidratados, somos conduzidos aos Land Rovers conversíveis da década de 1950, que fazem o trajeto do safári pela Reserva de Conservação do Deserto de Dubai.

Animais fantásticos
Criada em 2003 em conjunto com o Al Maha Desert Resort & Spa, o primeiro hotel de luxo integrado a um projeto de conservação no Oriente Médio, a Reserva tem como objetivo preservar o ecossistema do deserto árabe, ajudando a reintroduzir espécies de animais ameaçados ao seu habitat natural.
Pareceu até uma miragem quando avistei o primeiro órix-da-arábia, um antílope com chifres imensos e pontiagudos que foi quase extinto devido à caça excessiva na década de 1970 e hoje possui uma população estável dentro da Reserva. Durante o percurso, foi possível observar os animais andando em bandos, alguns até pareciam acompanhar o carro, seguindo as câmeras que os fotografavam com encantamento.

Outros animais que avistamos foram gazelas-árabes, menores e com passos mais delicados, que se mostraram mais ariscas à aproximação dos veículos. As raposas-do-deserto, por sua vez, não deram o ar da graça. São apenas três espécies de mamíferos habitando a região, além de algumas espécies de aves.
Ao longo dos trinta minutos de tour durante o pôr do sol, nosso motorista se encarregou de apontar e detalhar informações curiosas relacionadas à flora local, parte endêmica e parte trazida de fora com intuito de restaurar a vegetação da região e servir de alimento aos animais.

Aprendemos sobre os diferentes tipos de árvores e arbustos que possuem propriedades curativas para os beduínos, como é o caso da Artemisia judaica, planta utilizada como antisséptico em caso de ferroadas de escorpiões, ou da fire bush, que servia de abrigo contra o sol forte e tempestades de areia.
Outro destaque da Reserva são os oásis artificiais criados para estocar água e atrair fauna, o que permite com que os animais se hidratem já que o calor intenso, que chega facilmente aos 50°C, impede a formação de lagoas perenes.
Com o sol baixando e pintando as dunas numa tonalidade laranja escura, fomos levados a uma tradicional tenda beduína para conferir outro ponto alto do safári: uma demonstração de falcoaria.

Falcoaria
Antiga tradição beduína, a falcoaria foi por muitos séculos uma das formas de caça mais valorizadas nos países árabes. Nela, o falcão auxiliava no sustento das tribos nômades, capturando aves e pequenos mamíferos, como roedores e lebres. Atualmente, embora exista uma lei que regula quando e como a prática pode ocorrer, ela é muito menos comum e ocorre principalmente como demonstração cultural.
Fomos recebidos em uma tenda por um treinador acompanhado de seu falcão-peregrino, que era mantido preso ao braço. A ave usava um pequeno capuz que cobria os olhos, evitando que ela se estressasse com a movimentação dos humanos. A ave também carregava etiquetas de identificação e um dispositivo de GPS acoplado ao dorso que fica pareado ao celular do treinador.

Somos convidados a ficar em pé, nos limites da tenda, para observar o voo e a performance do treinador. Ele então retirou o capuz, liberou a ave do braço e, em seguida, ergueu uma vara de madeira com uma isca na ponta, usada para incentivar o falcão a dar rasantes em busca da recompensa.
Rapidamente, a ave dispara do céu ao chão em uma velocidade impressionante, seguida pelo som do rasante quando tenta apanhar a isca. É surpreendente observar as táticas de caça e os giros da ave no ar: quanto mais tempo ela fica solta, mais alto e mais rápido voa.
A demonstração durou cerca de um minuto, com o falcão abocanhando sua isca em meio aos aplausos do grupo de visitantes. Àquela altura o cenário parecia uma locação de um filme, com três camelos enfileirados caminhando ao fundo, sinalizando a parada final de nossa visita: o acampamento beduíno.

Mil e uma noites
Com tons âmbar iluminando a noite que surgia, duas tamareiras serviam de portal para o acampamento, espaço destinado ao jantar e às apresentações culturais. Apesar de ser montado especialmente para receber visitantes, o local é inspirado nos cenários beduínos tradicionais, com tendas, tapetes e lanternas que recriam a atmosfera histórica do deserto. Foi sugerido que ficássemos descalços ou de sandália.
O acampamento, com muros erguidos com pedras, se expandia em diversas recantos de socialização, com tendas espalhadas por todo o perímetro. O clima era aconchegante, com almofadadas em padrões geométricos tradicionais em tons de vermelho, dourado e bordô. O chão, coberto por tapetes kilim e esteiras, criavam a ambientação perfeita. Toda iluminação, quente e indireta, vinha de pequenas lanternas, acentuando o brilho dourado dos detalhes nos tecidos. Foi como uma viagem no tempo – ou como estar em um set de filmagem.

Ao adentrar o espaço, me ofereceram uma xícara de café e tâmaras desidratadas, fruto oficial do país. O amargor do café e o dulçor da tâmara, combinados, ficam perfeitos.
Ainda na entrada, era possível observar dois emiratis demonstrando diferentes preparos: um moía e torrava o café, que ficava cerca de 40 minutos na torra antes de ser coado. Outro preparava o tradicional pão rogag, fino e crocante, servindo de tira-gosto antes do jantar.

Tradições e refeições
Rompendo o som da música tradicional árabe, um anfitrião trajando a típica kandura branca, a tradicional túnica masculina, caminhava balançando um sino, indicando que os aperitivos seriam servidos. Com duas opções de saladas, pães pita e os clássicos molhos tahini e hummus, também foram oferecidos kibes e sambousek, semelhante a uma empanada de queijo.
Entre um prato e outro, ocorreram duas apresentações de danças locais, uma pausa bem vinda antes do jantar. A Yowlah, que antigamente celebrava o fim da temporada de caça, é executada com réplicas de rifles e envolve girar e lançar as armas para o alto, pegando-as novamente com precisão. Na sequência, fomos convidados a participar da apresentação do Al-Ayyala, uma arte performática tradicional que simula uma cena de batalha ao som de tambores e pandeiros. Fomos instruídos, sem muito sucesso, a tocar em sincronia, mas ainda assim foi um momento lindíssimo.
Voltando ao jantar, que era praticamente um banquete devido a variedade de opções, era possível escolher entre diferentes tipos de arroz, legumes na brasa e diversas proteínas. Os destaques do menu, porém, eram os exóticos harees de frango, preparado com trigo e frango desfiado, lembrando um purê doce mais espesso, e o cozido de camelo, que se assemelha em textura e sabor à nossa carne de panela.

Para encerrar a noite, com o céu cravejado de estrelas, fomos convidados a fazer um passeio de camelo, mas que não me despertou interesse e de nenhuma outra pessoa do grupo. O clima naquele momento convidava mais às selfies, a relaxar nas almofadas e, no máximo, a dar algumas baforadas na shisha (ou narguilé) com essência de maçã enquanto o vento varria as areias. Foi mágico!
A vivência toda durou cerca de quatro horas e foi um convite para conhecer um pouco o universo beduíno. Entre encontros com animais exóticos, música ao vivo e sabores locais, a atividade nos permitiu conhecer costumes árabes que seguem vivos no deserto. É uma pausa reveladora e que contrasta muito com a hipermodernidade de Dubai.
Serviço
Organizado pela Platinum Heritage, o safári Heritage Collection pode ser realizado durante o ano todo, com valores a partir de AED 695 por pessoa (cerca de R$ 1044). Embora existam outras empresas que ofereçam itinerários similares, esta opção se destaca pelo foco em conservação e história. Reservas e informações podem ser encontradas no site oficial. Há também itinerários privativos, jantares gourmet, bangalôs e até sala de cinema.
Fonte: viagemeturismo






