C
omo qualquer boa história de amor, existe algo que conecta o casal Vera Gorbunova e Andrei Seluanov. Os dois são cientistas – mais especificamente, biólogos –, trabalham na Universidade de Rochester, em Nova York, e pesquisam sobre câncer e longevidade. Mas não só: ambos são obcecados por mamíferos que vivem muito.
O casal já estudou morcegos, castores e ratos-toupeira-pelados em busca dos mecanismos por trás das suas vidas longas. A ideia é tentar aplicar esse conhecimento na saúde humana para aumentar a nossa longevidade e para combater o câncer.
Agora, as novas estrelas da dupla são as baleias-da-groenlândia (Balaena mysticetus), o mamífero com a maior expectativa de vida do planeta, ultrapassando dois séculos de vida. A mais recente pesquisa do casal, publicada na quarta-feira (29) na revista Nature, tenta explicar como esses animais conseguem comemorar duzentos aniversários.
O mistério da longevidade
À primeira vista, a vida longa desse mamífero de 80 toneladas é paradoxal. Isso porque animais enormes deveriam, em tese, enfrentar um problema letal: “Elas [as baleias] são tão grandes que precisam ter algum mecanismo especial de proteção, porque estatisticamente a chance de desenvolverem câncer é muito alta”, disse Gorbunova para o The New York Times.
É fácil entender: ao longo da vida, todos os organismos vivos sofrem danos no DNA, que, caso não sejam reparados pelo corpo, podem resultar na multiplicação acelerada e anormal de alguma célula – ou seja, em câncer. Animais maiores têm mais células e, portanto, mais chances de desenvolver uma falha que se tornará um tumor.
Isso deveria ser verdade não só para baleias, mas também para outros grandalhões como elefantes e girafas. Mas, na prática, não é isso que acontece. Esses animais têm menos câncer que humanos. O fenômeno esquisito tem nome na ciência: paradoxo de Peto.
Há explicações para esse aparente mistério, claro. Animais não estão completamente à mercê do câncer: muitas espécies possuem defesas moleculares contra tumores.
Uma estratégia comum é monitorar o crescimento das células. Se uma célula começa a se multiplicar descontroladamente, ela pode se autodestruir ou ser aniquilada por outra para evitar a formação de um câncer. O organismo de alguns morcegos, por exemplo, consegue amplificar o gene p53, conhecido por sua atuação na supressão de tumores, e assim seu sistema imunológico destrói células tumorais (essa descoberta também foi feita pelo casal da Universidade de Rochester, diga-se).
O gene p53 mais ativo que o normal é também o responsável pela longevidade dos elefantes. Gorbunova e Seluanov, então, queriam saber se as baleias-da-groenlândia teriam a mesma defesa. Para descobrir, foi necessário algo inédito: experimentos com células vivas das baleias.
Acontece que esses cetáceos são objetos de pesquisa particularmente difíceis. As baleias-da-groenlândia não apenas são um dos maiores animais da Terra – o que torna a criação em aquário impossível – como também estão em perigo de extinção, e, por isso, são protegidas.
A oportunidade para coletar as amostras de células chegou através das aldeias inuítes Iñupiaq, no norte do Alasca. Essa comunidade indígena tem permissão para caçar baleias-da-groenlândia, nos outonos, para alimentar seu povo.
Os caçadores costumam disponibilizar algumas amostras de tecido para cientistas. Todo ano, alunos que trabalham com Gorbunova fazem a longa viagem até o norte para coletar as amostras. “Não há serviço de entrega”, diz Gorbunova para a Nature. “Não há estradas.” Para preparar o tecido para a viagem de volta, os cientistas geralmente congelam as amostras.
Mas, desta vez, essa não era uma opção. “Se você congela, acabou. As células morrem”, disse Seluanov para o The New York Times. Em vez de congelar o tecido, os estudantes o embalaram em gelo dentro de uma caixa térmica e voaram de volta para Rochester o mais rápido possível (um voo do Alasca para Nova York pode demorar mais de 9 horas, e a comunidade Iñupiaq fica em um local remoto).
Milagrosamente, porém, as células sobreviveram. Em laboratório, elas passaram por uma série de experimentos que demonstraram que as amostras eram sim resistentes ao câncer – mas não da mesma forma que as células de elefante ou de morcegos. Em vez de apostar na destruição de células defeituosas, essas baleias conseguem reparar os danos ao DNA, tornando os tecidos saudáveis de novo.
A responsável pelo conserto é uma proteína conhecida como CIRBP, ativada principalmente pela exposição ao frio. Faz sentido: as baleias-da-groenlândia são a única espécie de baleia que passa o ano todo em águas frias e, por isso, produzem 100 vezes mais CIRBP do que os humanos.
“Essa estratégia, que não elimina as células danificadas, mas as conserta, pode estar contribuindo para a longevidade excepcional e a baixa incidência de câncer na baleia-da-groenlândia”, escreveram os pesquisadores no artigo.
A equipe então foi em busca de entender o efeito de altos níveis de CIRBP em outro mamífero: os humanos. Em laboratório, células humanas que receberam um reforço da proteína dobraram sua capacidade de consertar erros no DNA.
Ao fazer o mesmo teste em moscas, os cientistas verificaram que elas viveram mais e resistiram melhor à radiação (que pode causar mutações no DNA).
“Ao estudar o único mamífero de sangue quente que vive mais do que os humanos, nosso trabalho fornece informações sobre os mecanismos que permitem a longevidade, ressaltando a importância da manutenção do genoma”, afirma Gorbunova em comunicado.
Ainda não se sabe se esse superpoder de reparo é o único por trás da longevidade extraordinária da baleia, nem quanto da vida longa pode ser atribuído diretamente a ele. Mesmo assim, os cientistas estão animados o suficiente para tentar reproduzi-lo em camundongos, fornecendo doses extras de CIRBP para os roedores a fim de testar impactos na longevidade.
Outro plano para o futuro é tentar descobrir se humanos que encaram águas geladas com frequência (como nadadores de países frios ou adeptos dos banhos gelados) exibem níveis mais altos dessa proteína – e, se sim, tentar entender se há efeitos nas células e na longevidade desses indivíduos.
“Precisamos entender se a exposição ao frio é suficiente”, disse Gorbunova ao The Guardian. “Mas também estamos testando maneiras farmacológicas de chegar lá. Afinal, nem todo mundo quer mergulhar no Ártico.”
Fonte: abril







 
  
  
 