Em 2007, o artista plástico Carlos Zílio usou esmalte sintético para pintar sobre uma tábua uma obra pequena e bem simples, a qual chamou de “Homem construtivista excitado”. O tal “homem” é uma simples linha reta, perfeitamente vertical, que é cruzada no meio por outra, horizontal, que dispensa comentários.
A brincadeira aqui é usar as abstrações geométricas do construtivismo e desenhar o ser humano da maneira mais simples possível. No caso, Zílio enfatiza aquilo que, desde os primórdios, distinguiu os seres humanos dos demais animais: somos bípedes distintamente verticais.
Coluna ereta, cabeça erguida e um pé na frente do outro. Só nós, humanos, caminhamos desse jeito, e isso por causa de uma estrutura para a qual o “homem construtivista” também aponta (de um jeito bem vulgar): nossa pelve. Ao longo da evolução, nossos quadris passaram por alterações em suas estruturas ósseas que foram essenciais para dar ao ser humano equilíbrio sobre duas pernas.
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O que mudou, mais especificamente, foram dois ossos da pelve, simétricos e côncavos (curvados para dentro), quase no formato de duas cumbucas, que são colados à coluna vertebral, chamados ílios. Quando repousamos as mãos na cintura, é nos ílios que nos apoiamos.

Mas, afinal, como essas mudanças aconteceram? Isso ninguém sabe ao certo. Há pouco tempo, porém, um grupo de pesquisadores identificou dois passos importantes nesse desenvolvimento.
Em artigo publicado na Nature, os cientistas afirmaram que uma série de alterações no funcionamento de genes antigos durante a fase embrionária – ativados em lugares novos, ou ativando e desativando em momentos diferentes – foram peças-chave para que o humano caminhasse em direção ao bipedismo.
Virado do avesso
Um sem-fim de mutações acontece o tempo todo com os seres vivos. Genes ativam, desativam, reativam e interagem entre si, modificando certos processos até o ponto que, como nesse caso, um osso passa a se formar de um jeito completamente avesso ao que era antes.
Se a alteração traz algum tipo de vantagem no ambiente no qual determinado ser vivo está inserido, então há grandes chances que esses indivíduos prosperem e passem a mutação adiante. Foi o que aconteceu com os nossos antepassados que nasceram com um quadril que facilitou a caminhadinha.
Para entender essas mudanças, primeiro a pesquisadora Gayani Senevirathne, co-autora do estudo, analisou amostras de tecido fetal humano e observou tanto as células que se juntam para formar o ílio como também os genes que desligam e ligam durante a formação desse osso. Dessa análise, saiu um modelo tridimensional do ílio humano, na fase embrional.
A pesquisadora fez o mesmo com embriões de ratos e comparou os dois. Depois, verificou os de primatas – chimpanzés, gibões, entre outros, totalizando 18 espécies analisadas –, comparando-os também com as outras amostras.
O resultado: o ílio dos ratos e dos primatas se desenvolve de maneiras muito parecidas. Em cada lado da espinha dorsal, paralelamente, hastes feitas de cartilagem se formam e crescem até se fundirem à coluna, virando osso.
Nos humanos, no entanto, a história é outra.
No nosso corpo, durante sétima semana do desenvolvimento, o processo muda radicalmente de eixo. Uma única haste se estende por debaixo e perpendicular à coluna, com uma ponta direcionada para frente e outra para trás (para simplificar, imagine uma versão embrionária e levemente mais complicada do “homem construtivista”). Ela cresce e alarga até tomar a forma do ílio, mantendo a mesma orientação, mas ossificando em momentos e lugares diferentes.
O ílio resultante é mais largo e lateral. Somada a um alargamento do sacro (o osso triangular logo na base da coluna vertebral), essa alteração foi o que possibilitou a curvatura natural da nossa lombar.
Acompanhando os ossos, a musculatura do quadril mudou de acordo. Com o novo formato da pelve, extensores se tornaram adutores, e os músculos da bunda tinham novos pontos de ancoragem imprescindíveis para garantir o equilíbrio em um eixo vertical.
O que nada disso explica é a vantagem evolutiva de todas essas mudanças. Humanos, comparados a outros animais, correm de um jeito bem… medíocre. Somos lentos e usamos o dobro de energia que qualquer outro mamífero do nosso tamanho.
No entanto, uma das possíveis vantagens levantadas por cientistas não tem a ver com a intensidade da corrida, e sim com sua duração. Quadrúpedes, como nossos parentes primatas, correm bem mais rápido e por curtas distâncias. Já nós somos muito melhor preparados para corridas longas e demoradas, coisa que nenhum outro primata faz.
Os genes usados nesse processo de formação do ílio são os mesmos que nos macacos e nos ratinhos. Mas eles funcionam de maneira diferente – o estudo sugere que eles reagem a moléculas liberadas pelas células vizinhas ao osso, interagindo também com o sacro.
Em entrevista à Science, a geneticista Kimberly Cooper, da Universidade da Califórnia em San Diego, ressaltou o quanto que essas interações entre genes são complicadas. “Interações incrivelmente complexas tiveram que acontecer para remodelar a pelve humana, e é maravilhoso que ainda não entendemos esse processo”.
Essa mudança radical, que, entre 6 e 4 milhões de anos atrás, deu o suporte necessário aos músculos que propiciaram a caminhada em duas pernas, foi apenas a primeira. A segunda alteração se deu quando nossos bebês começaram a ficar cabeçudos demais.
Há 2 milhões de anos, o cérebro dos seres humanos começou a crescer. Por um motivo muito simples: aprendemos a cozinhar. O cozimento propiciou uma quantidade enorme de calorias adicionais que, por sua vez, possibilitaram a criação de mais neurônios.
Mesmo assim. A inteligência independe do tamanho do cérebro. A pressão para que nos tornássemos mais espertos provavelmente veio de vantagens ecológicas, sociais e culturais, facilitando a busca por recursos e alimentos, a cooperação entre indivíduos e o acúmulo de conhecimento.
À medida que o cérebro crescia, nossos crânios também se expandiram, de forma que atravessar a cavidade pélvica durante o parto de repente virou um grande problema. A resposta da seleção natural foi favorecer ossos adaptados a uma pelve mais abaulada, que facilitassem o parto, e o ílio mudou de acordo. Além disso, o novo formato da pelve deu aos órgãos e, durante a gravidez, ao feto, um leito sobre o qual repousar.
Fonte: abril






