Texto: Eduardo Ribeiro | Design: Juliana Krauss | Edição: Bruno Vaiano
A região é habitada há pelo menos 13 mil anos. Algumas estimativas (1) falam em mais de 10 mil sítios arqueológicos escondidos, prontos para serem descobertos. O local abrigou uma diversidade cultural e linguística ímpar na Antiguidade, e as evidências de intercâmbio cultural entre diferentes povos não param de surgir. Não, não é o Egito Antigo, a Grécia ou a Mesopotâmia.É a Amazônia.
O patrimônio histórico e cultural da floresta é ignorado por boa parte da comunidade acadêmica internacional e pela própria população brasileira, enquanto pecuaristas, grileiros, madeireiros e criminosos de toda sorte agem impunemente – entre 2020 e 2024 foram mais de 5 milhões de hectares desmatados, o equivalente a dois Sergipes, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A questão é que a Amazônia como a conhecemos não é só obra do acaso biológico: ela foi manipulada deliberadamente pelos povos da floresta, como um jardim, durante milênios. Em vez de pirâmides e obeliscos, a própria distribuição das árvores e arbustos é uma evidência da engenhosidade de indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que distribuíam sementes e mudas estrategicamente.
Atear fogo à floresta, em suma, é grave como a implosão da cidade neolítica de Palmira pelo Estado Islâmico em 2015 – as primeiras metrópoles brasileiras cresciam movidas a fotossíntese, obedecendo aos desígnios de arquitetos íntimos da selva.
Investigar esse Stonehenge de madeira e clorofila é o objetivo do projeto Amazônia Revelada, que une tecnologia de ponta aos conhecimentos locais para descobrir sítios arqueológicos em áreas sob risco de desmatamento. Com financiamento da National Geographic, os pesquisadores pretendem mostrar para o público o que existe debaixo da copa das árvores – e não, não é Ratanabá.

Menos gabinete, mais floresta
Eduardo Góes Neves faz pesquisa de campo na Amazônia há quase 40 anos. Professor titular e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), ele é um dos principais arqueólogos do País e o idealizador do Amazônia Revelada.
Em sua sala no museu, adornada com artefatos do mundo todo, o professor explicou com entusiasmo a ideia do projeto. Em 2021, ele recebeu um e-mail da National Geographic Society que dizia, nas palavras dele: “Se você tivesse muita grana, o que faria para proteger um lugar histórico que está ameaçado?”. Neves, então, escreveu uma proposta que caracterizava a floresta inteira como um monumento. Ousado, mas colou.
O leitor pode estranhar a ideia de classificar a Amazônia na mesma categoria de um sítio como Machu Picchu. Porém, as últimas décadas de estudos na área apontam que essa é uma caracterização razoável. Um bom exemplo disso são as castanheiras. A casca da castanha é dura; os únicos animais que conseguem quebrá-la são as cutias e nós mesmos. Cada árvore, portanto, é potencialmente um registro de ocupação humana no passado. Não dá para separar patrimônio natural de patrimônio histórico.
A ideia do projeto é mapear evidências de atividade humana em áreas da floresta que estão ameaçadas de destruição. A razão é que, de acordo com a Lei 3.924, de 1961, todos os monumentos arqueológicos em território nacional ficam sob a guarda e proteção do Estado. Quem atentar contra esses sítios pode ser julgado por crimes contra o patrimônio nacional.
Ou seja: a pesquisa científica é uma estratégia para proteger a Amazônia na marra. “É um projeto meio ativista, fora da caixinha dos projetos acadêmicos que a gente costuma fazer”, explica Cristiana Barreto, arqueóloga associada ao Museu Paraense Emílio Goeldi e uma das coordenadoras do Amazônia Revelada.
O primeiro passo no reconhecimento da floresta é uma engenhoca chamada LiDAR – sigla de light detection and ranging (“detecção e telemetria por luz”, na tradução preferida pela IBM), e um trocadilho com um equipamento similar, o bom e velho radar. O LiDAR dispara feixes de laser no comprimento de onda infravermelho, invisível para o olho humano. Ou seja: não adianta imaginar os sabres de luz de Star Wars.
Esse método high-tech permite localizar estruturas enterradas em locais cobertos por mato. “É basicamente uma tecnologia que dispara a luz para o chão e mede o tempo que ela leva para voltar”, explica Morgan Schmidt com seu sotaque de americano há 20 anos no Brasil. Ele é arqueólogo vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e um dos coordenadores do projeto.
O avião equipado com o LiDAR voa várias vezes por cima de uma região estratégica – os arredores do arco do desmatamento, a faixa de terra que fica na fronteira entre a Amazônia e o avanço da ocupação humana –, discernindo variações de altitude mínimas no terreno. Isso permite identificar, por exemplo, as ruínas de construções pré-cabralinas que estão cobertas pela vegetação há milênios.


Um outro pilar do projeto é a consulta às populações, que os pesquisadores reconhecem como herdeiras dos patrimônios arqueológicos. Antes dos sobrevoos, eles foram a campo para apresentar o projeto aos povos da floresta. É uma demonstração de respeito pela população local, e os habitantes da região colaboraram ativamente explicando quais lugares tinham potencial para descobertas.
A nomenclatura “povos da floresta” engloba tanto indígenas quanto ribeirinhos, beiradeiros e quilombolas. O conceito surgiu na década de 1980, quando povos originários e seringueiros, liderados pelo ambientalista e sindicalista Chico Mendes, se uniram para lutar pelo território e pelos seus modos de vida em harmonia com a Amazônia.
O conhecimento dessas pessoas sobre a mata, adquirido na prática e transmitido de geração em geração, é essencial para que os arqueólogos consigam navegá-la. Um dos coordenadores do projeto, diga-se, é um arqueólogo indígena. Os avós de Carlos Augusto da Silva, pesquisador ligado à Universidade Federal do Amazonas (UFAM), eram das etnias Munduruku e Apurinã, e ele é um dos principais responsáveis pela interlocução da equipe do Amazônia Revelada com as populações.
Tesouros revelados
Com o financiamento garantido e o esquema de consultas estabelecido, a equipe do Amazônia Revelada contratou a Fototerra, empresa que trabalha com a Petrobras, para realizar os sobrevoos entre maio e novembro de 2024. Eles já mapearam um pouco mais de 1.600 km², o equivalente a 224 mil campos de futebol padrão Fifa. Pode parecer muito – e é –, mas isso não representa nem 1% do enorme território da Amazônia Legal.
Em parceria com os povos da floresta, a equipe do Amazônia Revelada delimitou cinco regiões de sobrevoo. Os dados gerados pelo LiDAR foram enviados para o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que gera os modelos digitais do terreno: uma representação 3D de cada minúcia do solo. Os arqueólogos já descobriram 60 sítios inéditos, e continuam encontrando novas estruturas ocultas com esses mapas, como geoglifos.
Esse termo, que significa “marca na terra”, foi criado para descrever as Linhas de Nazca, desenhos gigantes feitos no solo do Peru há mais de 2.000 anos. Há equivalentes brasileiros: o Acre tem mais de 300 desses sítios, com valas e montículos distribuídos em padrões geométricos, cadastrados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – muitos deles danificados pelo desmatamento intenso na região.
Com o LiDAR, fica bem mais fácil encontrá-los. No Acre e no sul do Amazonas, por exemplo, o laser identificou quadrados gigantescos (um deles tinha o tamanho do Maracanã). Essas formações eram interligadas por longos caminhos, que atravessavam vales e rios e também seguiam uma geometria peculiar. Trata-se de um feito de engenharia impressionante, e alguns desses geoglifos podem ter até 3.000 anos.
Um geoglifo nem sempre tem finalidade artística ou ritualística. Às vezes, esses padrões no chão são simplesmente vestígios de construções antiquíssimas. Os quadradões acreanos, por exemplo, podem ter sido aldeias, com valas para proteção construídas ao redor das habitações e estradas que permitiam o comércio com a vizinhança. São indícios de sociedades com complexidade alta – bem mais alta do que pesquisadores europeus pensavam ser possível na mata fechada.

Enquanto isso, em Rondônia, no vale do Rio Guaporé, pertinho da fronteira com a Bolívia, o LiDAR ajudou a identificar algo jamais visto na Amazônia, na terra indígena (TI) Uru-Eu-Wau- -Wau: quarteirões. Ou quase isso… uma série de montinhos distribuídos ao longo de linhas, que formam um grid quadriculado, como o de uma cidade.
Um problema dessas investigações é que monumentos de pedra são raros na Amazônia. O normal, na floresta, é usar materiais de construção de origem orgânica, que não sobrevivem a milênios de desgaste. Sobram só montes e valas, que não permitem inferir tanto. Há exceções, porém – como a Serra da Muralha, um sítio em Rondônia conhecido desde a década 1970.
A tal muralha, construída com blocos grandes de pedra, tem 380 metros de extensão e 1,20 metro de altura. Seu perímetro é um “D” que delimita o topo da serra, e a obra tem algo entre 1.200 e 2.000 anos, ou seja: é mais antiga que qualquer relíquia inca ou asteca. Por enquanto, ninguém sabe o propósito dessa construção. Proteção é improvável: uma muralha do tamanho de uma criança de 7 anos não é intransponível.
Nem só de construções pré-cabralinas vive o LiDAR. Quando os europeus chegaram na região, começaram a construir fortes imponentes para proteger o ouro que era coletado no Mato Grosso e escoado pela Amazônia durante o século 18. Os pesquisadores já descobriram algumas dessas construções portuguesas perdidas, cuja existência só era conhecida por registros de espiões espanhóis do século 17.
Enquanto isso, na área remota do Riozinho do Anfrísio – o nome simpático é de um afluente do afluente do afluente do Rio Amazonas, floresta adentro –, há vestígios do que parecem ter sido casas comunais circulares, com uma área de descarte ao redor. Foi justamente o acúmulo de lixo orgânico que criou os montículos identificados pelo LiDAR. A disposição dessas lixeiras, muito próximas entre si, sugere uma densidade populacional alta.
Não era só descarte. Era adubo – o adubo responsável por criar o tipo de solo que os arqueólogos denominam “terras pretas” (2). Essas terras férteis, hoje, cobrem algo entre 2% a 3% da Bacia Amazônica e são uma biotecnologia indígena que começou a ser desenvolvida há mais de 5.000 anos.
Por muito tempo, acreditou-se que esses solos escuros, importantes para viabilizar a agricultura, surgiam por meio de fenômenos naturais. Não é o caso: as terras pretas são muito mais nutritivas e resistentes às chuvas e à erosão do que o solo comum da Amazônia, e foram criadas deliberadamente pelos indígenas.
Para cadastrar um sítio arqueológico no Iphan como patrimônio digno de ser preservado, contudo, é preciso ter dados coletados em campo. Ou seja: uma vez feita a detecção com o LiDAR, ainda é preciso desbravar a floresta para conseguir protegê-los.
Os arqueólogos do projeto estão tentando desenvolver opções de registro só com sensoriamento remoto, já que algumas áreas são praticamente inacessíveis. Por ora, no entanto, o jeito é “fazer uma coisa meio Rambo” – as palavras são de Neves. O pesquisador está com 58 anos, e se diz velho para descer de rapel pela floresta. Que bom que ele formou uma geração de arqueólogos muito empolgados.

Busquem conhecimento
Nos últimos anos, as notícias mais lidas sobre o passado da floresta não vieram da equipe do Amazônia Revelada, mas de um grupo obscuro chamado Ecossistema Dakila, chefiado por Urandir Fernandes de Oliveira. Fã de teorias da conspiração sobre alienígenas, seu nome forma o acrônimo UFO.
Foi Oliveira e sua trupe que espalharam a notícia falsa de que haveria uma cidade perdida à moda Atlântida no coração da Amazônia. Ratanabá teria sido construída por extraterrestres há 450 milhões de anos – ou seja: antes dos dinossauros e do próprio ecossistema amazônico existirem.
Trata-se de um absurdo completo, é claro, mas o timing dessa picaretagem pseudocientífica foi perfeito: a história começou a viralizar na semana em que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados por seu trabalho de preservação ambiental e proteção dos direitos dos indígenas – e serviu como cortina de fumaça para encobrir a repercussão midiática do crime.
Enquanto o Amazônia Revelada encontra várias Ratanabás verdadeiras, construídas pelos povos indígenas, Oliveira faz sucesso com aliens: também foi ele que criou o ET Bilu, alçado à fama em 2010. O conselho dessa simpática forma de vida – “busquem conhecimento” – permanece válido. Difícil era achar informação confiável nas redes sociais enquanto a página de fofoca Choquei e o então Secretário da Cultura do governo Bolsonaro, Mário Frias, compartilhavam o noticiário fictíciosobre Ratanabá.
Para combater a desinformação, os pesquisadores sérios estão cientes de que precisam ocupar as trincheiras online. “Se mandar eu rebolar no TikTok, eu faço”, brinca Neves. A equipe do Amazônia Revelada é ativa no Instagram e entende que a comunicação é uma parte essencial do projeto – tanto quanto as consultas aos povos da floresta e os mapeamentos com o LiDAR.
Se há um momento certo para falar da Amazônia, é agora. Desde que Neves começou a estudar o passado da floresta, cerca de 12,5% da cobertura vegetal foi destruída por agronegócio, exploração madeireira, mineração e garimpo ilegal. Esse uso e abuso da Floresta Amazônica é combustível para a crise climática que faz o mundo ferver.
Esse é o resultado de uma ideologia que remonta aos primeiros anos de colonização do Brasil e continua até hoje. Durante o regime militar, inclusive, havia o slogan “Amazônia, terra sem homens para homens sem terra”. Foi assim que a ditadura justificou a construção da faraônica Transamazônica, uma rodovia que permanece inacabada e foi responsável pela morte de cerca de 2 mil indígenas (3).

Desde a redemocratização, os povos da floresta ganharam direitos na Constituição e os governos passaram a ter um respeito maior pelos territórios. Mas a ideia da floresta “virgem”, sem história e sem cultura, pronta para explorar, continua implícita tanto em empreendimentos criminosos como em obras do Estado, como a hidrelétrica de Belo Monte e a planejada Ferrogrão, que afetaria áreas mapeadas pelo Amazônia Revelada.
O estudo da floresta mostra que nosso relacionamento com ela não precisa ser assim. Em outubro de 2024 aconteceu o 1º encontro do projeto Amazônia Revelada, no Museu da Amazônia (Musa), em Manaus. Foram mais de 70 pessoas entre cientistas e moradores dos territórios pesquisados. O clima era de festa, para comemorar os primeiros resultados do projeto.
O investimento da National Geographic Society está chegando ao fim. Agora, os arqueólogos estão procurando novas fontes de financiamento para bancar as próximas investigações com LiDAR – as comunidades locais já estão fazendo fila para participar do processo – e as expedições para conhecer alguns desses sítios de perto.
A luta para defender a floresta e desvendar seu passado continua. “Se depender de mim, esse projeto vai virar um programa, e a gente vai mapear a floresta inteira”, diz Neves com brilho nos olhos. Esperança não falta, nem convicção: todos os envolvidos sabem que não existe futuro para o Brasil se não preservarmos o passado – e o presente – da Amazônia.
Agradecimentos: Bruna Abreu, da National Geographic, Bruna Rocha e Lúcio Costa Leite, do Amazônia Revelada.
Referências: (1) artigo “More than 10,000 pre-Columbian earthworks are still hidden throughout Amazonia”; (2) artigo “Intentional creation of carbon-rich dark earth soils in the Amazon”; (3) 1º relatório do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas.
Fonte: abril