Debates de internet são, via de regra, uma palhaçada. São exercícios sofísticos em que a vaidade e os espantalhos dominam. Ninguém entra ali para aprender ou rever posições, nem os debatedores, nem o público. O objetivo é outro: inflar o ego, humilhar o adversário e sair com a sensação de que “o outro lado” foi derrotado. O conteúdo filosófico e científico, nesse ambiente, pouco importa; o que conta é a validação da própria tribo e o reforço de estereótipos.
Não espanta que a plateia se comporte como torcida de futebol. Para a direita, é certo que o direitista venceu; para a esquerda, a vitória foi do esquerdista. Os cortes de vídeo só aumentam a farsa: conforme quem publica, parece que um aniquilou o outro. No fim, tem-se a impressão de que sequer comentam o mesmo debate. Cada grupo ouve apenas sua melhor versão e sai convencido de que o seu lado foi superior. A realidade é substituída pela narrativa, e cada público se fecha num universo paralelo, impenetrável em sua própria bolha.
Isso mostra como os debates atuais alimentam uma espiral de rivalidade e incomunicabilidade. Que ironia: aquilo que deveria criar um elo de entendimento termina por gerar ainda mais dissonância. E por quê? Porque falta o que a Filosofia sempre apontou como condição mínima de um verdadeiro diálogo: o “terceiro termo transcendente”, isto é, a Verdade, o Logos, algo que se ergue acima dos egos e não pode ser manipulado pela conveniência. É justamente aí que se distingue a “discussão” do “diálogo”. Na discussão, cada lado só busca sair vitorioso e ninguém se dispõe a ouvir; no diálogo, o objetivo já não é vencer, mas ser vencido pela verdade.
“Ah, professora, mas eles ainda usam retórica!” Ora, até Sócrates, modelo filosófico e histórico de honestidade intelectual, fazia uso de bons recursos retóricos. O problema não está aí. A retórica, por si mesma, não é o inimigo. O verdadeiro vilão é a retórica pela retórica, usada apenas para inflar o ego e “vencer um debate mesmo sem ter razão”. Já retórica a serviço da verdade consiste justamente em levar o outro a sério, como nos lembra Pedro Sette-Câmara:
“Dedicar-se à retórica é tratar o outro como um sujeito racional, digno dos melhores argumentos que você conseguir elaborar. O declínio da retórica é o declínio da democracia, e vem de antes da polarização política. Afinal, hoje esperamos que a democracia funcione sozinha, e achamos que os outros são apenas umas toupeiras que não entendem o óbvio; não os achamos dignos de ouvir argumentos cuidadosamente elaborados (o que inclui, obviamente, não insultar a pessoa que você gostaria de convencer).”
Prestem atenção neste trecho: “O declínio da retórica é o declínio da democracia, e vem de antes da polarização política.” É claro! Para que uma democracia funcione, precisa haver um núcleo de pessoas com cultura histórica, literária e científica, capaz de traduzir as grandes teses e ideias numa linguagem acessível ao povo. Sem esse grupo, o que resta ao cidadão comum? O povo perde a possibilidade de formar uma visão de mundo consistente, porque lhe faltam referências, tanto de sua própria cosmovisão, quanto da cosmovisão dos outros. Em vez de uma sociedade unida por uma linguagem comum e filosófica, o que se terá é uma forte divisão em tribos rivais e ressentidas.
Os debates respeitosos e honestos têm justamente a função de tirar o povo do tribalismo. Não se trata de algo alcanlável individualmente, pois não existe projeto iluminista que dê conta de fabricar uma humanidade inteira de intelectuais. A tão sonhada “maioridade intelectual universal” não passa de utopia. Como diz Ana Campagnolo, a educação superior se chama “superior” exatamente porque não é para todo mundo. A educação superior se chama “superior” exatamente porque não é para todos. A básica, sim, é universal; a superior, porém, exige vocação. Nem todos terão o desejo, a disposição ou o tempo para ler os diálogos de Platão, os tratados de Aristóteles ou a Suma Teológica de Tomás de Aquino. Do mesmo modo, nem todo direitista terá paciência para Marx, Foucault e Judith Butler, assim como nem todo esquerdista lerá Burke, Oakeshott e Scruton.
É justamente aí que o debate público se torna essencial: ele serve para pôr as cartas na mesa e expor com clareza o que o outro lado realmente pensa, sem espantalhos e sem truques baratos. Só assim a adesão a uma posição deixa de nascer do escândalo e passa a vir da convicção. E isso é o mínimo necessário para que possamos chamar uma sociedade de democrática.
O problema do Brasil é que esse diálogo desapareceu. A esquerda, em grande parte, já não tem a menor ideia do que se passa na cabeça de um conservador; e muitos conservadores se contentam em enxergar a esquerda como uma caricatura grotesca. Isso não surgiu por acaso: foi resultado da substituição calculada de jornalistas e debatedores por militantes e agitadores, incapazes de qualquer reflexão honesta. A chamada “revolução cultural gramsciana” levou a cabo esse projeto meticuloso de ocupação dos espaços, de mídia, universidades e instituições culturais, até tomar tudo. O ressentimento se tornou tão profundo que até o “outro lado” passou a reagir como um autômato, sem disposição para perguntar: “E se houver, do lado de lá, um esquerdista sensato, um homem de verdade, e não apenas um espantalho?”
Essa foi a proposta de Ana Campagnolo, declaradamente antifeminista, ao chamar para o debate Espectro Cinza, declaradamente feminista: abrir espaço para ouvir o outro lado e ser ouvida por ele. O encontro aconteceu na sexta-feira, no canal do YouTube “RedCast”.
Não foi, sejamos justos, um diálogo socrático no sentido mais estrito, pois não houve a experiência aporética ou aquele momento em que os interlocutores reconhecem a própria ignorância e partem em busca de uma tese comum. O que houve foi um debate, como todo debate, com discordâncias inevitáveis, pontos soltos e temas mencionados sem reflexão aprofundada. Ainda assim, foi um marco nacional: o primeiro debate sério entre uma feminista e uma antifeminista no Brasil.
Pela primeira vez, duas adversárias se ouviram, se respeitaram e se trataram como pessoas reais, não como caricaturas. Isso, por si só, já eleva o nível. Foi um confronto entre duas mulheres que, goste-se ou não, estudam. E aí está o ponto central: se uma estuda de verdade e a outra não, podem colocar trinta contra uma, como está na moda, que o desfecho continuará sendo um circo. Mas, se debates como o de Ana Campagnolo e Espectro Cinza se tornassem regra, haveria esperança de um espaço público que voltasse a ser um lugar de pensamento e convertesse, quem sabe, o tribalismo da socidade.
Fonte: gazetadopovo