Há milhares de anos (a data exata ainda é incerta), os humanos cruzaram o estreito de Bering, entre a Rússia e o Alasca, e se tornaram os primeiros habitantes das Américas. Na árdua missão de desbravar o continente ainda virgem, eles contavam com uma arma inusitada: uma variante genética herdada dos denisovanos que os ajudou a se adaptar ao novo ambiente.
Os denisovanos são uma espécie misteriosa que conviveu (e fez sexo) com os sapiens entre 300 mil e 30 mil anos atrás, mais ou menos. Eles foram descobertos em 2010 na caverna de Denisova, na Rússia, e alguns poucos fósseis foram encontrados recentemente na Ásia. Foi só em 2025 que, pela primeira vez, um crânio foi identificado como sendo de um denisovano – revelando, assim, a aparência destes nossos primos perdidos.
Sabemos que eles e os sapiens cruzaram porque algumas populações atuais possuem DNA denisovano – até 5% do material genético de nativos da Oceania tem essa origem, por exemplo. Agora, um novo estudo descobriu que essa contribuição genética também teve um papel importante na migração para as Américas.
A pesquisa focou no gene MUC19, que regula a produção de proteínas presentes na saliva e no muco que reveste partes do sistema respiratório e digestivo. O muco não é só o material nojento que sai do seu nariz quando você está gripado: a gosma faz parte do sistema imunológico, servindo como a primeira camada de proteção contra microrganismos que acabam presos e eliminados no líquido viscoso.
Os cientistas da Universidade do Colorado e da Universidade Brown, nos EUA, descobriram que populações de americanos nativos possuem uma variante específica do gene que tem origem denisovana, com várias mutações em relação à variante mais comumente encontrada em indivíduos europeus. O estudo, publicado na revista Science, analisou o material genético de populações de países como México, Peru, Porto Rico e Colômbia.
A variante em questão está presente não só em latino-americanos com ascendência indígena como também em restos mortais de 23 pessoas que morreram antes da chegada dos europeus e dos africanos no continente, confirmando que se trata de um traço trazido já pelos primeiros humanos nas Américas.
A alta frequência com que ele aparece nas populações americanas indica que o gene denisovano foi selecionado positivamente pelo ambiente por trazer algum benefício. Não se sabe qual vantagem, mas é possível especular que ela esteja relacionada com a imunidade: o MUC19 dos denisovanos pode ter protegido os primeiros desbravadores americanos de patógenos. Mundo afora, a variante denisovana até existe, mas é bem menos comum.
“Do ponto de vista evolutivo, esta descoberta mostra como cruzamentos ancestrais ainda podem ter efeitos atuais”, diz Emília Huerta-Sánchez, professora na Universidade Brown e uma das autoras do estudo. “Do ponto de vista biológico, identificamos um gene que parece ser adaptativo, mas cuja função ainda não foi explicada. Esperamos que isso leve a estudos adicionais sobre o que esse gene realmente faz.”
Um sanduíche genético
Não para por aí: o gene denisovano está numa região do DNA repleta de material de origem neandertal, outro hominídeo extinto que conviveu com os sapiens e com os denisovanos. “Esse DNA é como um Oreo, com um recheio denisovano e biscoitos neandertais”, explica Fernando Villanea, pesquisador da Universidade do Colorado e um dos autores do estudo.
Isso sugere que a variante genética pode ter chegado aos humanos com um intermediário. Os denisovanos, que sabemos que cruzavam com os neandertais, passaram a característica primeiro para eles; depois, essa herança genetica chegou aos humanos por meio do sexo com neandertais, ainda na Eurásia, muito antes dos sapiens conquistarem as Américas. Por aqui, ess versão do gene foi selecionada pelo ambiente e se tornou comum.
Fonte: abril