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SAÚDE

Como as crenças influenciam a nossa percepção da realidade: entenda a conexão entre mente e percepção

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Lá por 2009 me deparei com a ideia de que o pensamento poderia moldar a realidade. O best-seller da vez era O Segredo, recheado de deturpações filosóficas e científicas a serviço do poder do pensamento positivo. Num documentário correlato chamado “Quem Somos Nós?” lembro-me de um sujeito que jurava nunca mais ter dificuldade em achar vaga de estacionamento desde que começou a “vibrar” positividade. Em sua boca, desejos eram convertidos em vagas via mecanismos quânticos improvisados. Faltava apenas perguntar se algum shopping havia notado o súbito desaparecimento de carros ou o surgimento de novas vagas em suas câmeras de segurança.

Em outro momento de um desses documentários, falavam sobre como os nativos da América do Sul não viram as caravelas chegando, pois não tinham uma palavra para designar aquela enorme embarcação. Foi por volta dessa época que também me deparei com o Pura Picaretagem, do Carlos Orsi e do Daniel Bezerra, um interessante antídoto contra essas lorotas quânticas de autoajuda.

Esse é o tipo de delírio comercializado pela indústria do otimismo, mas não é dele que quero tratar. A discussão realmente séria — respaldada por debates filosóficos e dados científicos — é a possibilidade de que estados mentais influenciem a percepção. Em outras palavras, que crenças, expectativas e até a linguagem possam infiltrar-se nos estágios mais básicos da visão, da audição, do tato.

Pode soar como mera curiosidade acadêmica, mas não é. Se nossos pensamentos podem alterar aquilo que percebemos, as consequências para a epistemologia — ou seja, para nossa capacidade de conhecer a realidade e agir com base nesse conhecimento — são profundas. Esse é o ponto de partida que nos levará às ilusões de ótica, talvez o campo mais instigante para investigar esse suposto vazamento entre cognição e percepção.

Medição objetiva 

Imagine olhar para uma ilusão de ótica, como a clássica Müller-Lyer: duas linhas com setas nas pontas, que parecem ter comprimentos diferentes, mas na verdade são idênticas. Mesmo depois que você mede com uma régua e sabe que as linhas são iguais, seus olhos insistem em lhe dizer o contrário. Esse fenômeno foi usado por décadas como um dos melhores exemplos de que a percepção funciona como um módulo encapsulado — uma engrenagem cognitiva isolada que não compartilha suas informações com outros módulos, igualmente isolados.

Essa proposta foi defendida por Jerry Fodor na sua teoria da modularidade da mente (1983) e é um dos argumentos por trás das ilusões de ótica explicadas como consequências de mecanismos inatos da percepção visual. Para esse filósofo, alguns sistemas mentais — especialmente os perceptivos — operam de forma automática, rápida, inconsciente e, o mais importante, imunes ao que sabemos, acreditamos ou desejamos. Em outras palavras, a percepção não negocia com a cognição. Por isso, ilusões de ótica persistem mesmo diante do conhecimento racional que as desmente.

A visão modular

Para entender a força da proposta de Fodor, voltemos às ilusões. Se a percepção fosse penetrável, bastaria dizer a nós mesmos: “essas linhas são iguais” e pronto, o efeito sumiria. Mas não: continuamos a ver uma linha maior do que a outra. Esse tipo de persistência ilustra o que Fodor chamava de encapsulamento informacional. O módulo perceptivo só recebe inputs limitados (luz, som, toque) e os processa de acordo com suas próprias regras, sem acesso direto ao conhecimento do resto da mente.

Esse argumento foi reforçado por muitos exemplos. Pense no pôr do Sol: sabemos que a Terra gira em torno do Sol, mas ainda assim vemos o Sol se pondo. Ou no som da fala: você pode entender perfeitamente o que é dito, mas não consegue não ouvir uma frase falada no seu idioma como linguagem articulada. São indícios de que a percepção segue algoritmos automáticos e indiferentes à cognição consciente.

Essa perspectiva modular teve enorme influência. Ela garantia um certo “realismo perceptivo”: se os módulos são encapsulados, então a percepção nos dá uma janela relativamente confiável do mundo. O que vem depois — interpretação, inferência, crença — pode ser enviesado, mas a base perceptiva estaria segura.

Mas será que essa história está completa? E se o que vemos, ouvimos ou sentimos não fosse apenas produto de mecanismos encapsulados, mas também resultado de como pensamos, falamos e esperamos que o mundo seja? Isso alteraria tudo que sabemos sobre a relação entre percepção, teoria e realidade. Esse é o ponto de partida para o debate sobre a penetrabilidade cognitiva da percepção, uma das discussões mais quentes da psicologia e filosofia da mente nas últimas décadas.

O desafio 

A partir dos anos 1990, começaram a se acumular pesquisas sugerindo que essa separação não é tão estanque. A percepção, ao que tudo indica, é muito mais plástica e permeável ao conhecimento, à linguagem e às expectativas do que Fodor supôs.

Um dos exemplos mais famosos vem da ilusão McGurk, descrita em 1976. Nesse experimento clássico, os participantes ouviam repetidamente uma sílaba simples — por exemplo, o som de /ba/ — mas viam na tela o vídeo de uma pessoa articulando outra sílaba, como /ga/. O resultado foi surpreendente: em vez de perceber um ou outro som, a maioria relatava ouvir uma terceira sílaba inexistente, como /da/, fruto da fusão entre os estímulos visuais e auditivos conflitantes. Em outras palavras, o que os olhos mostravam reconfigurava o que os ouvidos captavam. Isso não seria possível se os módulos auditivos e visuais fossem realmente encapsulados. Aqui, um canal sensorial literalmente penetra o outro, criando uma percepção híbrida que não corresponde a nenhum estímulo isolado.

Outro exemplo vem do efeito fissão. Nesse experimento, um único flash de luz era apresentado acompanhado de dois ou três bipes sonoros. O resultado era que a maioria dos participantes jurava ter visto dois ou três flashes, quando na realidade só havia um. Em outras palavras, o ouvido literalmente enganou os olhos. Esse achado mostra de maneira didática como sinais auditivos podem reorganizar a percepção visual, criando a experiência subjetiva de algo que nunca aconteceu.

Ainda mais provocadores são os estudos que investigam como a linguagem molda a percepção visual. Palavras não são apenas rótulos: elas funcionam como gatilhos que ativam categorias mentais capazes de modular o processamento dos estímulos. Em um experimento típico, basta dizer “zebra” e, logo em seguida, mostrar uma imagem borrada de uma zebra: os participantes têm muito mais chance de reconhecê-la. A palavra atua como uma espécie de “lanterna cognitiva” que ilumina certas possibilidades e apaga outras.

Em outro protocolo, conhecido como supressão contínua de flash, imagens são escondidas por estímulos visuais concorrentes de alta intensidade. O curioso é que, quando os participantes ouvem uma palavra relacionada ao objeto, a figura que estava invisível pode subitamente emergir à consciência. Ou seja, não estamos apenas diante de uma interpretação mais eficaz de um estímulo ambíguo, mas de uma mudança real no limiar perceptivo: aquilo que era literalmente invisível passa a ser visto porque uma palavra abriu caminho para a percepção.

A atenção guiada por expectativas também entra nesse quadro. Estudos de busca visual revelam que palavras ou instruções prévias ajustam seletivamente quais propriedades visuais serão priorizadas. Se digo que você deve procurar uma “letra B”, seu sistema visual é pré-ativado para detectar formas compatíveis, alterando o processamento perceptivo básico.

Esses e outros resultados minam a ideia de que a percepção é imune à cognição. Em vez de módulos encapsulados, o que temos é um sistema altamente integrado, onde informação de alto nível pode — em certas circunstâncias — moldar a forma como percebemos estímulos.

Ilusões 

Mas então, por que ilusões como a Müller-Lyer resistem ao conhecimento sobre o tamanho real das linhas? Como cegos e outros animais também caem nessas armadilhas perceptivas? A resposta pode estar na teoria da percepção como inferência estatística.

Como já expliquei antes, diversas linhas de evidências sugerem que não vemos o mundo como ele é, mas como é provável que seja, dadas as estatísticas acumuladas pela evolução (história da espécie) e pela experiência (história do indivíduo). Essa proposta de percepção como inferência já era defendida por Hermann von Helmholtz no século 19. Para ele, a visão era um tipo de “inferência inconsciente”: o cérebro combinava sinais sensoriais com hipóteses baseadas em experiências anteriores para construir a percepção. Assim, o que vemos resulta de cálculos probabilísticos que unem estímulos imediatos e expectativas acumuladas. Nesse sentido, ilusões não são erros, mas estratégias otimizadoras que funcionam na maioria dos casos.

Isso reconfigura o argumento contra a penetrabilidade. O fato de as ilusões persistirem não prova o encapsulamento. Significa apenas que certos vieses perceptivos estão de tal forma consolidados (por evolução e aprendizado) que não se deixam abalar facilmente pelo raciocínio consciente. Mas em outros casos, como vimos, expectativas, palavras e categorias alteram sim o que é percebido.

Consequências filosóficas

As implicações dessa discussão vão muito além da psicologia experimental. Se a percepção é penetrável pela cognição, então a velha distinção entre observação e inferência fica abalada. Jerry Fodor tinha receio de que essa visão levasse a um relativismo não só científico, mas perceptivo: não é que nossas teorias científicas não seriam resultado de observações neutras da realidade, é que para início de conversa nem a nossa percepção sensorial mais básica teria esse nível de neutralidade.

Previsivelmente, isso pode gerar muitos problemas para a filosofia da ciência. Por exemplo, quando um astrônomo do século 17 via manchas no Sol, ele as percebia como imperfeições físicas ou como “emanações” etéreas, de acordo com suas concepções prévias. Quando um psicólogo analisa gráficos, pode ver padrões que confirmam sua hipótese. A percepção penetrada pela cognição corre o risco de se tornar um eco das próprias crenças.

Mas nem tudo está perdido. Muitos filósofos defendem que essa penetrabilidade não é uma maldição, mas uma vantagem adaptativa. Se a percepção serve para guiar o comportamento, faz sentido que ela integre todas as fontes de informação disponíveis — crenças, linguagem, contexto cultural — para reduzir erros de previsão. Essa é a lógica do cérebro preditivo: sistemas perceptivos não buscam retratar fielmente o mundo, mas minimizar o erro global de predição. Nesse cenário, “ver o que esperamos” não é uma falha, mas uma estratégia de sobrevivência.

O dilema epistemológico, portanto, não é trivial. Se a percepção é modulada pela cognição, então todo conhecimento é, em alguma medida, circular: nossas teorias moldam o que vemos, e o que vemos molda nossas teorias. Isso ameaça não só o ideal de uma observação puramente objetiva, mas também nos faz questionar o quanto nossas teorias descrevem o mundo real ou apenas a nossa interação com a realidade. Isso também nos convida a pensar numa ciência mais consciente de seus próprios vieses e mais cuidadosa em seus métodos de correção (replicação, controle duplo-cego, estatísticas robustas).

No fim, a moral é quase irônica: vemos para crer, mas também cremos para ver. A penetrabilidade cognitiva da percepção não diminui nossa humanidade — pelo contrário, revela a engenhosidade de um sistema que, para sobreviver e conhecer, precisa misturar o que está diante dos olhos com o que já habita a mente.

Fonte: abril

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