O debate sobre o enquadramento de grupos como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como organizações terroristas voltou ao centro das discussões no país após a megaoperação nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro. Propostas relacionadas ao tema tramitam no Congresso Nacional e pretendem endurecer o combate às facções que dominam o crime organizado.
Se aprovados, esses projetos de lei elevariam as penas para os condenados, concentrariam as investigações na Polícia Federal e abririam uma brecha para os Estados Unidos enfrentarem as facções no Brasil.
Analistas consultados pela Gazeta do Povo se dividem sobre as propostas: alguns consideram que o enfrentamento seria mais efetivo, mas há ressalvas, principalmente sobre a eventual atuação dos EUA.
A mudança central está na ampliação das motivações que passariam a caracterizar o crime de terrorismo, fazendo com que atos de domínio territorial, intimidação da população ou desestabilização da ordem pública sejam considerados também atos terroristas.
Hoje, as motivações previstas em lei são relacionadas apenas a xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião.
A pena também mudaria: passaria de 3 a 8 anos de prisão, do crime organização criminosa, para 12 a 30 anos, relativos ao crime de terrorismo.
Atualmente, os projetos de lei mais avançados na Câmara são o PL 1283/2025, proposto pelo deputado Danilo Forte (União-CE); e o PL 2428/2025, apresentado pelo deputado Capitão Alden (PL-BA). Eles foram aprovados em agosto e setembro na Comissão de Segurança Pública e agora aguardam votação na Comissão de Constituição e Justiça. Se aprovados neste colegiado, vão ao plenário da Casa.
PCC e CV são tratados como organizações criminosas comuns
Atualmente, as facções são tratadas na lei como organizações criminosas, tipo penal cuja pena varia de três a oito anos de reclusão – em geral, quem comete esse crime também é punido pelos demais delitos cometidos pela organização.
A Lei 12.850/2013 define o crime de organização criminosa como a associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e com divisão de tarefas, que tenha por objetivo obter vantagens com crimes de pena acima de 4 anos ou com caráter transnacional. A lei pune quem integra, financia, lidera organizações criminosas ou mesmo atrapalha investigações relacionadas a elas.
A Lei 13.260/2016 do terrorismo, por sua vez, traz punição que varia de 12 a 30 anos. O terrorismo é definido como ato que atenta contra a vida ou a integridade física de pessoas por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião. Esses atos devem ser cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
Também são enquadrados como terrorismo atos com essas características que utilizam explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos e nucleares. Da mesma forma, são considerados atos terroristas a sabotagem ou controle, com violência ou grave ameaça, de estruturas de comunicação, transporte, saúde, educação, energia, instalações militares e instituições bancárias.
O entendimento atual é que as facções, como qualquer organização criminosa, têm por objetivo central o lucro, cometendo crimes como tráfico, extorsão e lavagem de dinheiro. Não seriam terroristas porque não haveria um objetivo político ou ideológico. Essa é a posição defendida pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Essa distinção, no entanto, vem sendo contestada por especialistas e parlamentares.
As propostas classificam as facções como terroristas com base na compreensão de que elas dominam territórios inteiros dentro das grandes cidades impondo uma lei própria, do crime, que batem de frente com a lei do Estado, e o impede de atuar nessas áreas.
“Essas organizações frequentemente atuam como uma espécie de Estado paralelo radical e inaceitavelmente opressor. Obrigam particulares a adquirirem determinados produtos e serviços, extorquem a população sob a justificativa de cobrar pela proteção, restringem liberdades individuais, como a locomoção e a expressão e possuem sua própria, sinistra e arbitrária forma de administração da justiça, em que penas cruéis e capitais são a regra”, diz o parecer do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), favorável à aprovação, apresentado nesta segunda-feira (3) à CCJ da Câmara.
Se as facções forem enquadradas como terroristas, seus integrantes serão submetidos não apenas a penas maiores, mas também a regras mais duras no processo.
Uma pessoa presa por suspeita de integrar organização criminosa pode ser solta, em tese, pagando fiança. Mas isso não ocorre se for investigada por terrorismo, que é inafiançável. A prisão temporária, no primeiro caso, é de 10 dias, mas de 60 em caso de terrorismo. Em ambos os casos, de qualquer modo, é relativamente fácil o juiz manter a pessoa em prisão preventiva se considerar que ela põe em risco a ordem pública.
Outra diferença está no bloqueio de bens, facilitado no caso de grupos terroristas. Cabe ao investigado, neste caso, provar que os bens são lícitos para liberá-los.
Atuação exclusiva da Polícia Federal no combate às facções é controversa
A competência para investigação e processamento varia no caso das organizações criminosas: inquéritos podem ser instaurados pelas policiais civil ou federal, e o julgamento pode ocorrer na Justiça estadual ou federal.
No caso do terrorismo, a competência é sempre federal, mas uma das propostas da Câmara abre a possibilidade de as facções serem investigadas e processadas em âmbito estadual, a não ser que atuem em várias unidades da federação ou fora do país.
Relator do PL 1283/2025, o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) defende que a investigação criminal permaneça a cargo das Polícias Civis e o processamento e julgamento no âmbito da Justiça Estadual.
“O bem jurídico tutelado no caso de crimes praticados por facções que estão presentes em todos os Estados da Federação não pode ser entendido como de interesse exclusivo ou mesmo preponderante da União, mas pertencente a todos os entes federativos e à sociedade local”, explica.
Para o advogado criminalista Bruno Gimenes Di Lascio, a mudança poderia ser positiva do ponto de vista logístico. “As facções há muito deixaram de ser meras gangues locais e passaram a ser empreendimentos nacionais e transnacionais. Talvez a federalização da investigação e da persecução seja uma medida adequada do ponto de vista de integração das políticas de segurança”, avalia.
Na mesma linha, o professor de Segurança Pública do Ibmec Brasília Fagner Dias destaca que a centralização na esfera federal poderia tornar o combate mais efetivo em certos aspectos. “A Polícia Federal tem maior capacidade técnica para investigações complexas, interestaduais e internacionais, como lavagem de dinheiro e tráfico de armas. No entanto, a atuação das facções é fortemente local, o que exige o trabalho articulado com as forças estaduais. A competência federal não deve substituir a estadual, mas fortalecê-la por meio da integração e da especialização”, diz.
Já o delegado André Santos Pereira, presidente da Associação dos Delegados de Polícia de São Paulo (ADPESP) pondera que o mero deslocamento para a Polícia Federal e julgamento para a Justiça Federal “poderiam gerar um paradoxo”.
Para ele, essa alteração elevaria em muito o volume de inquéritos a serem deflagrados pela Polícia Federal, que possivelmente não teria estrutura. “Soluções para a crise da segurança não devem ser tomadas de afogadilho, com uso político, tampouco sem discussão ampla com a sociedade civil. Aumento de pena por si só não gera resultado, e sim a aplicação correta da lei e o aprimoramento da execução penal”, avalia Pereira.
Possível atuação dos EUA levanta questionamentos
O enquadramento das facções como organizações terroristas também abriria a possibilidade de ampliar a cooperação internacional, em especial com os Estados Unidos, que vêm pressionando o governo brasileiro neste ano a reconhecer formalmente o PCC e o CV como grupos terroristas.
A proposta é controversa. No início de 2025, o governo do atual presidente dos EUA, Donald Trump, classificou seis cartéis de drogas mexicanos, um salvadorenho e um venezuelano como terroristas. O argumento é de que, assim como grupos radicais islâmicos, eles representam ameaça à segurança nacional.
Leis americanas permitem que as Forças Armadas atuem fora do território americano para capturar ou executar esses traficantes, sem processo e julgamento, o que é questionado por seus países de origem por ferir a soberania nacional e também por organismos e entidades multilaterais, por violar normas do direito internacional.
Segundo Fagner Dias, professor de Segurança Pública do Ibmec Brasília, o reconhecimento formal poderia “abrir espaço para maior cooperação com os EUA, incluindo sanções econômicas, rastreamento financeiro global e colaboração com agências como o FBI [Departamento Federal de Investigação, em tradução da sigla para o português] e a DEA [Administração de Repressão às Drogas]”.
“Há, contudo, riscos significativos”, pondera. “O conceito de terrorismo é juridicamente sensível e, se ampliado sem critérios claros, pode gerar distorções e abrir brechas para abusos. Além disso, trazer atores estrangeiros para atuar em território nacional exige muito cuidado institucional e diplomático”, acrescenta Dias.
André Santos Pereira também avalia que a ampliação dessa cooperação levanta questionamentos jurídicos e diplomáticos. “A legislação americana permite uma série de ações a partir da classificação de organizações no conceito de terroristas. Elas são de várias ordens, como atuação direta em território estrangeiro, e aí abre-se uma discussão séria sobre soberania, restrições econômicas a corporações ou pessoas físicas, fornecimento de know how [conhecimento, em inglês] para investigações e fluxo de dados, dentre outras”.
Para o advogado criminalista Bruno Gimenes Di Lascio, no entanto, a avaliação é de que “os Estados Unidos não precisam dessa classificação para atuar na medida de sua competência”. Para Di Lascio, expandir o conceito de terrorismo “é possível, mas com enormes cuidados”. “É sempre importante considerar que, no Brasil, o texto da lei nem sempre é aplicado contra os seus devidos alvos — e pode acabar sendo usado contra os inconvenientes do momento”, acrescenta o advogado.
Fonte: gazetadopovo






