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Cientistas decodificam a linguagem das baleias em um dicionário de “baleiês”

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o final dos anos 1960, o biólogo Roger Payne, conhecido por suas pesquisas sobre ecolocalização em morcegos e corujas,  escutou no rádio uma notícia fúnebre enquanto trabalhava em seu laboratório na Universidade Tufts, em Boston. Uma baleia morta havia sido encontrada encalhada na areia da Praia de Revere, a cerca de 8 km do centro da capital de Massachusetts. Instigado, Payne resolveu dirigir até o local.

Já era tarde e chovia quando o biólogo finalmente encontrou o corpo de uma toninha, um tipo de cetáceo comum nas águas do Hemisfério Norte. Alguém havia cortado suas nadadeiras, duas pessoas gravaram as próprias iniciais na lateral do corpo e outra enfiou a ponta de um charuto no espiráculo – o orifício no topo da cabeça por onde baleias e golfinhos respiram.

Em um relato, Payne escreve que tirou o charuto do espiráculo e ficou na praia por um longo tempo. “Todo mundo tem uma experiência dessas que afeta o resto da vida, provavelmente várias. Aquela noite foi a minha.” Depois disso, o biólogo mudou de área e dedicou a vida às baleias e à sua conservação. Naquela época, esses animais eram caçados a rodo – e muitas espécies beiravam a extinção. 

Pouco antes disso, em 1966, Payne havia ouvido falar de Frank Watlington, um engenheiro da Marinha que oito anos antes havia capturado sons assustadores de gemidos subaquáticos enquanto operava uma estação de hidrofone ultrassecreta na costa das Bermudas, espionando submarinos russos no ápice da Guerra Fria. O biólogo pediu cópias das gravações e se pôs a analisá-las. 

Em 1967, ao lado do pesquisador Scott McVay, Payne descobriu que jubartes machos emitem complexos padrões sonoros durante o cortejo de fêmeas. Cada canção dura até meia hora e é entoada por um grupo inteiro de uma só vez. Pesquisas subsequentes de Payne e sua esposa, Katharine, revelaram que as melodias mudam sutilmente de ano para ano. Katharine descobriu ainda que as peças são divididas em blocos reconhecíveis como versos e estrofes, e usam um recurso análogo às nossas rimas, com estruturas-chave se repetindo. Entenda no gráfico abaixo:

Infográfico, em fundo marrom, com um padrão de unidades de som.
(Brenna Oriá/Superinteressante)

As gravações dos cantos foram lançadas em LP com o título Songs of the Humpback Whale, em 1970, e ajudaram a impulsionar o movimento conservacionista. A caça comercial de baleias foi finalmente proibida pela Comissão Baleeira Internacional em 1986 – mesmo assim, ainda ocorre clandestinamente. Desde então, estudos ligados à comunicação desses animais estouraram no mundo da biologia marinha, e os especialistas colecionam descobertas na área.

Pedra de Roseta 

O próximo grande passo na investigação das conversas cetáceas veio na década de 1980 com Louis Herman, da Universidade do Havaí, que demonstrou que golfinhos não só conhecem o significado de palavras individuais como têm noções de sintaxe, ou seja: entendem a importância da ordem em que as palavras aparecem (um exemplo didático na nossa linguagem é a diferença entre “grande homem” e “homem grande”). 

Em 1994, foi demonstrado que golfinhos-nariz-de-garrafa criam assobios exclusivos para cada indivíduo, que funcionam como nomes próprios. Mais recentemente, descobriu-se que mães golfinho usam sons mais agudos com os filhotes – como a “vozinha de bebê” usada por humanos.

Em 2011, biólogos mostraram que as canções das jubartes se espalham de forma contagiante entre populações distantes do Pacífico Sul. Novas melodias surgem em uma população e, em poucos anos, dominam outras. Essa é uma das evidências mais claras da existência de transmissão cultural em uma espécie não-humana.

No ano seguinte, uma beluga foi registrada emitindo sons com uma prosódia semelhante à da fala humana: mergulhadores relataram ouvir “vozes” dentro do tanque, mas, quando analisaram as gravações, perceberam que era o animal imitando a melodia característica da nossa linguagem para tentar se comunicar conosco. Mais tarde, descobriu-se também que diferentes grupos de orcas têm sotaques únicos. 

Pesquisas recentes deram um passo além ao mostrar que os sons desses mamíferos seguem padrões matemáticos e estatísticos semelhantes aos das línguas humanas. Um estudo avaliou vocalizações de 16 espécies de cetáceos e investigou se princípios linguísticos como a lei de Zipf e a lei de Menzerath estavam presentes nas vocalizações.

A lei de Zipf diz que palavras mais usadas tendem a ser mais curtas e aparecem com maior frequência – como “o” e “de” em português. Já a lei de Menzerath descreve como, em sequências longas, as unidades internas (como sílabas) tendem a ser mais curtas. Ambas foram identificadas em diferentes graus na comunicação dos cetáceos. 

Ainda não sabemos, porém, se as baleias têm semântica, ou seja: se cada conjunto de sons está associado a um objeto ou conceito do mundo real em um dicionário mental de baleiês ou se eles são como notas musicais – que não têm significado intrínseco e só fazem sentido em relação a outras notas. Nos próximos parágrafos, vamos entender dois projetos diferentes que tentam decifrar o vocabulário desses cantores. 

Dr. Dolittle

Inspirado no Dr. Dolittle – o médico que falava com animais –, o ricaço britânico Jeremy Coller criou o Desafio Coller Dolittle para comunicação bidirecional interespécie, que promete até US$ 10 milhões para quem decifrar, de forma não invasiva, a linguagem de outros animais e estabelecer uma troca com eles.

Enquanto a meta não é batida, Coller distribui prêmios anuais de US$ 100 mil a cientistas que avançam na tarefa. A primeira contemplada foi Laela Sayigh, uma pesquisadora da Woods Hole Oceanographic Institution, em Massachusetts. Ela e sua equipe são responsáveis por uma pesquisa que busca traduzir os assobios de golfinhos. 

Colagem, em fundo azul e malha quadriculada, com um cientista conversando com um golfinho através de uma tabela de sinais.
(Brenna Oriá/Superinteressante)

Há décadas, Sayigh estuda golfinhos-nariz-de-garrafa na costa da Flórida. Trabalhando com o Programa de Pesquisa em Golfinhos de Sarasota, ela e seus colegas descobriram 22 assobios que não são nomes próprios (chamados tecnicamente de “assobios não assinatura”). “Começamos a notar muitos assobios repetidos por vários golfinhos, e fizemos experimentos tocando esses sons [para os golfinhos] para tentar entender como eles funcionam”, conta Sayigh.

Um deles parece significa algo como “O que foi isso?”, emitido quando algo inesperado acontece. Outro clique, mais agudo, tem jeito de ser um alerta: quando os pesquisadores o reproduziram para os animais, a maioria rapidamente se afastou.

Agora, eles estão desenvolvendo modelos de inteligência artificial para ajudar a classificar esses sons, tarefa que hoje é feita manualmente. Fazer a curadoria no braço “é a forma mais precisa, mas é também bastante desafiadora”, explica Sayigh. Isso porque as vocalizações variam muito conforme o contexto – social, emocional ou ambiental – em que são emitidas.

Quando questionada se os golfinhos têm uma linguagem como a nossa, ela é direta: “Acho que provavelmente não. Mas isso não significa que eles não tenham um sistema de comunicação realmente interessante. Eles só não fazem as coisas do jeito que a gente faz”.

Há outros projetos semelhantes mundo afora. Recentemente, o Google apresentou um novo modelo de IA, o DolphinGemma, para colaborar com o Wild Dolphin Project, um estudo de quatro décadas com golfinhos-pintados do Atlântico nas Bahamas. Denise Herzing, líder do projeto, desenvolve um trabalho semelhante ao de Sayigh no Caribe.

Papos profundos 

Os cachalotes são os maiores predadores com dentes do planeta, capazes de mergulhar a mais de mil metros em busca de lulas. Lá embaixo, reina a escuridão, o que os torna dependentes da ecolocalização – um sonar biológico que permite detectar distâncias pelo tempo que um som emitido demora para se refletir em um obstáculo e voltar à fonte. 

Essa capacidade sofisticada de vocalização os tornou exímios tagarelas, e os cachalotes acabaram inspirando a criação da Iniciativa de Tradução de Cetáceos, ou CETI (um trocadilho com o programa SETI, uma iniciativa de comunicação com extraterrestres fundada por nomões como Carl Sagan).

Desde 2020, o CETI reúne biólogos, linguistas, engenheiros e especialistas em inteligência artificial na missão de traduzir cliques rítmicos chamados “codas”, usados pelos cachalotes em diálogos estruturados.

Em 2005, o biólogo Shane Gero fundou o Dominica Sperm Whale Project, dedicado a estudar um grupo de cerca de 400 cachalotes residentes no entorno da ilha de Dominica. Após duas décadas de observação, Gero acumulou milhares de horas de gravações, que agora são estudadas pelo CETI. A análise revelou que existem 156 tipos de codas (antes, pensava-se que eram 21). 

As codas parecem organizadas em ritmos distintos e consistentes, como se obedecessem a uma sintaxe. Há algumas com três cliques espaçados regularmente, outras com sete cliques em intervalos crescentes, e até uma versão sincopada, o 1+1+3, que lembra um ritmo do chá-chá-chá. Há também pausas de quatro segundos entre as codas.

A tecnologia tem sido aliada indispensável nessa empreitada. O time do CETI, liderado pelo biólogo marinho David Gruber, criou algoritmos capazes de identificar baleias individuais pelo timbre da voz com 94% de taxa de acerto. 

Agora, o CETI planeja transformar a costa oeste de Dominica em um estúdio submarino. Três sistemas de escuta de alta resolução – cada um com hidrofones instalados a centenas de metros de profundidade – começarão a operar logo [veja o gráfico abaixo]. A expectativa é coletar até 4 bilhões de cliques, 40 mil vezes mais que o acervo atual de Gero, para alimentar os sistemas de IA e, quem sabe, entender as cabeçudas. 

Infográfico explicando a captação e a análise de dados do sistema de comunicação dos cetáceos.
(Brenna Oriá/Superinteressante)

Vale por mil palavras

Roger Payne, que faleceu em 2023, foi um dos integrantes do projeto CETI. Dias antes de sua morte, publicou um artigo defendendo a importância da iniciativa. Para ele, baleias e outras espécies enfrentam ameaças graves, como as mudanças climáticas, e só a inspiração pode motivar a ação humana. “Se pudéssemos nos comunicar com os animais, fazer perguntas e receber respostas, o mundo poderia em breve se comover o suficiente para começar o processo de interromper nossa destruição descontrolada da vida.”

Pensando nisso, o programa anunciou uma parceria com um projeto de advogados ativistas, o MOTH (a palavra moth significa “mariposa”, mas a sigla aqui quer dizer more than human, “mais que humano”). A ideia é que, decodificando a comunicação desses animais, juristas compreendam o incômodo das baleias e possam advogar em seu favor. Por exemplo, se fôssemos capazes de traduzir uma conversa em que uma família de cetáceos relata ter mudado sua rota migratória devido ao excesso de barulho causado por embarcações, esse testemunho poderia ser usado em processos para reivindicar a criação de uma zona de silêncio. 

Colagem, em fundo azul e malha quadriculada, com uma orca usando gravata.
(Brenna Oriá/Superinteressante)

Aqui, porém, temos uma situação parecida com a do filme A Chegada, de Denis Villeneuve, em que uma linguista é convocada a decifrar a escrita de visitantes alienígenas e descobre que os símbolos representam vários conceitos simultaneamente em vez de ordená-los da esquerda para a direita ou de cima para baixo. “Para realmente entender outra espécie, precisamos compreender como ela percebe o mundo”, explica David Farrier, professor da Universidade de Edimburgo e autor do livro Nature’s Genius. “Nunca conseguiremos fazer isso por completo, teríamos que compartilhar os mesmos sentidos.”  

Existe um conceito alemão que resume esse problema: umwelt. Ele descreve a forma única como cada espécie percebe e vivencia o mundo ao seu redor, moldada por seus sentidos e sistemas perceptivos. Embora humanos e outros animais compartilhem o mesmo planeta, cada um está preso a uma realidade sensorial distinta. Como, por exemplo, é usar a ecolocalização? É algo mais parecido com nossa visão ou com nossa audição? 

“A poluição sonora que causamos nos oceanos está forçando as baleias a mudar seus cantos ou até a silenciar completamente. Isso também é uma forma de linguagem – e nós estamos ignorando.”

David Farrier

Não é preciso, porém, traduzir o papo em baleiês para concluir que o ser humano é um incômodo para a vida marinha e não tem dividido o planeta respeitosamente com seus demais habitantes. É evidente que um testemunho em primeira pessoa de outra espécie seria um marco para a biologia e para os esforços de conservação. Mas o cadáver vilipendiado que Payne encontrou na praia nos anos 1960 dá a dica: caso os cetáceos conversem sobre nós, certamente não têm boa opinião a respeito da nossa espécie.

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Fonte: abril

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