VocĂȘ estĂĄ passeando na praia e vĂȘ uma concha grande, daquelas que a Ariel usa para ouvir o som do mar. Inocentemente, vocĂȘ a pega com as mĂŁos, sem saber que ali dentro ainda vive um dos animais mais venenosos do mundo. Foi assim que morreram pelo menos 36 pessoas nos Ășltimos trĂȘs sĂ©culos, desde que os caracĂłis-do-cone (Conus geographus) começaram a ser monitorados.
Agora, cientistas estudam as toxinas desse animal e como elas podem ajudar a produzir medicamentos para diabetes. Uma pesquisa sobre esse tema foi publicada nesta terça (20) na revista Nature.
Pode ser que vocĂȘ conheça a sensação que o caracol-do-cone provoca em suas vĂtimas: uma das toxinas Ă© parecida com um hormĂŽnio humano chamado somatostatina, que regula o nĂvel da glicose no sangue. Quando circulam na corrente sanguĂnea, as substĂąncias provocam uma baixa na glicose (hipoglicemia) cujos primeiros sintomas sĂŁo confusĂŁo mental, fraqueza e tremores. Levado ao nĂvel extremo, a hipoglicemia provocada pelo caracol-do-cone deixa a vĂtima sem reação, e mata em atĂ© cinco horas.
A somatostatina atua como um âfreioâ para muitos processos no corpo humano, impedindo que os nĂveis de açĂșcar no sangue, hormĂŽnios e outras molĂ©culas aumentem perigosamente.Â
Os pesquisadores da Dinamarca e EUA descobriram o caracol-do-cone produz uma toxina chamada consomatina. Ela funciona de forma semelhante Ă somastostatina, mas Ă© mais estĂĄvel e especĂfica do que o hormĂŽnio humano. Enquanto a somatostatina interage diretamente com vĂĄrias proteĂnas, a consomatina interage apenas com uma. Esse direcionamento preciso faz com que a toxina do caracol-do-cone afete os nĂveis de hormĂŽnio e de açĂșcar no sangue, mas nĂŁo os nĂveis de muitas outras molĂ©culas.
A consomatina tambĂ©m Ă© mais especĂfica do que as drogas sintĂ©ticas de primeira linha, e dura muito mais tempo no corpo do que o hormĂŽnio humano, graças Ă inclusĂŁo de um aminoĂĄcido incomum que dificulta sua decomposição. Esse Ă© um outro mecanismo que deve ser Ăștil para os pesquisadores farmacĂȘuticos que investigam maneiras de produzir medicamentos com benefĂcios duradouros.
A descoberta revela um modelo promissor para o projeto de medicamentos, mas ainda nĂŁo passou por testes clĂnicos em animais ou humanos. Na verdade, os pesquisadores pretendem estudar um mecanismo semelhante, mas que seja menos agressivo que a substĂąncia do caracol.
âEssa consomatina, em especĂfico, nĂŁo Ă© particularmente para o diabetes, mas achamos que poderia ser um bom tipo de inspiração para futuros distĂșrbios hormonais e para tratamentos de cĂąncerâ diz Ho Yan Yeung, bioquĂmica e principal autora do estudo, em entrevista Ă Super.

Encontrar medicamentos melhores por meio do estudo de venenos mortais pode parecer contraintuitivo, mas Helena Safavi, autora sĂȘnior do estudo, explica que a letalidade das toxinas geralmente tem um direcionamento preciso de molĂ©culas no corpo da vĂtima. Essa mesma precisĂŁo pode ser muito Ăștil no tratamento de doenças.
âOs animais peçonhentos, por meio da evolução, ajustaram os componentes do veneno para atingir um alvo especĂfico na presa e desorganizĂĄ-loâ, diz Safavi. âSe vocĂȘ retirar um componente individual da mistura de veneno e observar como ele perturba a fisiologia normal, essa via geralmente Ă© realmente relevante para doenças.â Ela explica que, para quem trabalha com a quĂmica da medicina, âĂ© um meio que um atalhoâ.
âĂ muito surpreendente como muitos desses animais peçonhentos nos deram tantos candidatos a medicamentos interessantes, que poderĂamos desenvolver como futuras terapiasâ diz Yeung, que cita exemplos de medicamentos que foram obtidos a partir de venenos de larvas, aranhas e cobras. âIsso mostra que precisamos investigar mais a natureza para tentar encontrar fontes de medicamentos mais interessantes para o futuro.â
Fonte: abril