Humanos conseguem falar sobre uma variedade infinita de tópicos graças à nossa habilidade de combinar sons e palavras para formar frases distintas e complexas, algo exclusivo de nossa espécie e que diferencia nossa comunicação da de outros animais.
Agora, uma equipe de cientistas afirma ter detectado uma versão mais modesta desta mesma característica no falatório de macacos bonobos (Pan paniscus).
Em um novo artigo publicado na revista Science, cientistas da Universidade Harvard e da Universidade de Zurique afirmam que a comunicação dos bonobos, também chamados de chimpanzés-pigmeus, possui uma característica conhecida como composicionalidade – a capacidade de combinar elementos linguísticos em estruturas maiores e mais complexas, gerando infinitos sentidos. Até então, acreditava-se que os Homo sapiens eram os únicos que possuíam essa habilidade.
A conclusão veio após a análise de centenas de horas de gravações feitas em uma reserva na República Democrática do Congo, país localizado na África Central.
Discursos pomposos
Várias espécies de animais usam sons para se comunicar. A diferença é que, em geral, cada som tem apenas um significado – um alerta de perigo, uma ordem, um chamado etc –, e eles raramente se relacionam. A composicionalidade entra na jogada quando esses elementos são combinados para criar novos sentidos.
Há dois tipos de composicionalidade, porém. A primeira, chamada trivial, é formada por elementos independentes entre si. Por exemplo: a expressão “dançarino loiro” significa que alguém é dançarino e também é loiro. Essa mesma pessoa pode ser um médico loiro, um amigo loiro, um marido loiro etc.
Já na composicionalidade não-trivial, o sentido do todo é formado por partes que não são independentes, mas que se relacionam entre si. A expressão “bom dançarino” é um exemplo: não estamos falando de alguém que é bom e que também é um dançarino; “bom” se relaciona apenas com o substantivo “dançarino”. Não dá para afirmar que é um bom médico, um bom marido, um bom amigo etc.
É a composicionalidade não-trivial que torna nossa comunicação tão avançada – somos, em teoria, capazes de criar infinitos significados combinando diferentes palavras.
Estudos anteriores já haviam identificado composicionalidade trivial em algumas espécies comunicativas, como em pássaros e chimpanzés, mas a não-trivial permanecia exclusiva dos humanos até agora, justamente por ser mais complexa.
No novo artigo, os pesquisadores gravaram e analisaram mais de 300 vocalizações feitas pelos macacos ao longo de oito meses. Mas não só: a equipe também incorporou informações sobre o contexto de cada uma dessas “falas”: o que os bonobos estavam fazendo no momento que ela foi emitida, onde e com quem estavam, se havia algum elemento próximo (como um outro animal ou alguma ameaça), além de registrarem o que o emissor do som e os ouvintes próximos fizeram após a comunicação
Com isso, os cientistas conseguiram identificar significados para cada som distinto, criando uma espécie de dicionário de bonobês. Se um som específico sempre aparecia quando uma ameaça estava por perto, por exemplo, ele é um chamado de alerta, uma espécie de “Cuidado!”.
O próximo passo é mais complexo. Para verificar se há composicionalidade no falatório dos macacos, ou seja, se os sons se combinam e se relacionam entre si, os pesquisadores usaram um método matemático emprestado da linguística humana, que consiste em analisar com que frequência duas palavras distintas aparecem juntas na mesma frase. Isso porque, estatisticamente, palavras com significados parecidos costumam ser aplicadas em contextos similares.
Por exemplo, as palavras “tubarão” e “peixe” costumam aparecer mais frequentemente em frases que também contenham as palavras “animal” e “predador”. Mas é bem mais raro que esses mesmos elementos surjam junto de um substantivo como “banco” ou “estetoscópio”. Dá para afirmar que o “parentesco” entre esses vocábulos é bem mais distante do que o dos exemplos anteriores.
Aplicando essa metodologia, os cientistas conseguiram identificar as relações entre os sons emitidos pelos macacos. O resultado mostrou que havia composicionalidade em pelo menos quatro combinações; isto é, o significado dessas “frases” era derivado do significado das “palavras”.
Mais impressionante, porém, foi o fato de que os cientistas afirmam que três dessas quatro combinações apresentam composicionalidade não-trivial, ou seja, feita por elementos que mudam o sentido um do outro quando estão juntos. Essa característica linguística é complexa e, pela primeira vez, foi identificada em animais – ainda que de forma bastante modesta.
Em um dos exemplos citados pelos cientistas, um som apelidado de Peep, que tem o significado de “Venha!”, é associado com um assobio chamado High-hoot, que quer dizer “Preste atenção em mim!”. Quando juntas, essas duas “palavras” são usadas para coordenar o grupo de bonobos logo antes de uma viagem, ou seja, tem um significado novo.
Um quebra-cabeças evolutivo
O estudo é emblemático porque levanta questões importantes quanto à evolução da linguagem nas espécies. Poderia a composicionalidade ter surgido muito antes do que se imaginava? Até então, pensava-se que essa era uma característica recente, já que parecia exclusiva dos humanos. Mas, se nossos primos evolutivos também apresentam a mesma habilidade, é possível que ela tenha surgido bem atrás na árvore dos primatas.
“Como humanos e bonobos tiveram um ancestral comum há aproximadamente 7 milhões a 13 milhões de anos, as espécies compartilham muitas características, e parece que a composicionalidade é provavelmente uma delas”, diz Martin Surbeck, professor de Harvard e coautor da pesquisa.
“Nosso estudo, portanto, sugere que nossos ancestrais já usavam extensivamente a composicionalidade há pelo menos 7 milhões de anos, se não mais”, acrescenta Simon Townsend, coautor do estudo e professor da Universidade de Zurique.
É uma afirmação ousada, claro, e que com certeza não vai ser tomada como verdade absoluta logo de cara por outros pesquisadores. De qualquer forma, o estudo estabelece uma linha de investigação que, no futuro, pode comprovar a ideia.
Fonte: abril