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Saúde

A influência da dinâmica astronômica nas rochas terrestres: rastros reveladores

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As rochas que formam a crosta terrestre são tradicionalmente classificadas em três grandes grupos: ígneas, sedimentares e metamórficas. Essa divisão leva em conta os processos que dão origem a cada tipo. 

As rochas ígneas, por exemplo, são formadas pelo resfriamento e solidificação do magma. As metamórficas formam-se a partir da transformação de outras rochas, submetidas a altas temperaturas e pressões, que alteram sua textura e mineralogia sem que haja fusão. As rochas sedimentares, por sua vez, se formam devido à acumulação e litificação de fragmentos de outras rochas, restos orgânicos ou precipitação química. 

Esses três grupos não existem de forma isolada: eles fazem parte do chamado ciclo das rochas, um processo contínuo em que, ao longo do tempo geológico, cada tipo pode se transformar nos outros, registrando a dinâmica história do planeta.

 

Infográfico da representação do ciclo das rochas, mostrando os processos geológicos que transformam continuamente rochas ígneas, sedimentares e metamórficas umas nas outras ao longo do tempo
Representação do ciclo das rochas, mostrando os processos geológicos que transformam continuamente rochas ígneas, sedimentares e metamórficas umas nas outras ao longo do tempo. (Fragoso & Kuchenbecker (2025)/Divulgação)

Dentre estes tipos de rochas, as sedimentares se destacam por registrarem valiosas informações sobre o clima, a vida e os processos geológicos do passado — incluindo os ciclos astronômicos. 

O acúmulo de partículas e outros materiais que compõem as rochas sedimentares ocorrem em áreas conhecidas como “bacias sedimentares”. A maior parte desses sedimentos — como cascalho, areia e argila — tem origem no desgaste de outras rochas e são transportados por rios, ventos, geleiras ou pela gravidade, e depositados em ambientes como lagos, mares e desertos. Outra parcela dessas rochas se forma pela precipitação de substâncias dissolvidas na água do mar e de lagos, como ocorre com os evaporitos e os calcários. Com o passar de milhões de anos, o peso das camadas compacta esses materiais depositados, transformando-os em rochas.

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Esquema ilustrativo da formação de rochas sedimentares. A partir de regiões elevadas os sedimentos transportados por diversos processos até uma bacia sedimentar, onde se acumulam em camadas ao longo do tempo. Com o soterramento, esses sedimentos se transformam em rochas, registrando a história geológica da região. (Fragoso & Kuchenbecker (2025)/Divulgação)

De modo geral, os processos de formação das rochas sedimentares são profundamente influenciados pelo clima: variações no regime de chuvas, na intensidade dos ventos ou na temperatura das águas marinhas, por exemplo, afetam diretamente o tipo de sedimento depositado e sua distribuição nas bacias.

Como o clima terrestre é, em parte, controlado por ciclos astronômicos — cujas durações são conhecidas — compreender essas variações celestes permite aos geocientistas identificar ritmos ocultos no empilhamento das rochas e estimar a passagem do tempo geológico. Por isso, as bacias sedimentares funcionam como verdadeiros arquivos naturais da história da Terra.

A partir do século XIX, as ideias sobre os ciclos astronômicos e seus efeitos no clima inauguraram uma nova forma de interpretar o registro geológico (saiba mais sobre a relação entre ciclos astronômicos e clima aqui). Desde então, geólogos passaram a identificar, nas camadas de rochas sedimentares, as marcas dos movimentos orbitais da Terra refletidas em oscilações ambientais recorrentes ao longo do tempo.

Ilustração da órbita da Terra varia em três movimentos principais: e precessão (movimento de “pião” do eixo da Terra, que altera a posição das estações ao longo da órbita, em ~20 mil anos), obliquidade (variação da inclinação do eixo terrestre, de cerca de 22,5° a 24,5°, em ciclos de ~40 mil anos) e excentricidade (mudanças na forma da órbita, de mais circular a mais elíptica, em períodos de ~100 e 400 mil anos. Esses ciclos modificam a distribuição da energia solar recebida pelo planeta, influenciando o clima ao longo do tempo geológico.
A órbita da Terra varia em três movimentos principais: e precessão (movimento de “pião” do eixo da Terra, que altera a posição das estações ao longo da órbita, em ~20 mil anos), obliquidade (variação da inclinação do eixo terrestre, de cerca de 22,5° a 24,5°, em ciclos de ~40 mil anos) e excentricidade (mudanças na forma da órbita, de mais circular a mais elíptica, em períodos de ~100 e 400 mil anos. Esses ciclos modificam a distribuição da energia solar recebida pelo planeta, influenciando o clima ao longo do tempo geológico. (Fragoso & Kuchenbecker (2025)/Divulgação)

O estadunidense Grove Karl Gilbert (1834–1918) foi um dos primeiros geólogos a se inspirar por essas ideias. Em 1895, ao estudar rochas sedimentares no estado do Colorado, EUA, Gilbert identificou uma alternância regular entre camadas de calcário, formado em águas rasas, claras e quentes, e marga, uma rocha argilosa resultante do acúmulo de sedimentos finos em águas mais profundas.

Ele sugeriu que um padrão tão regular no registro rochoso deveria estar ligado a um processo igualmente periódico na natureza, propondo sua associação ao ciclo orbital de precessão — o movimento lento e gradual do eixo da Terra, semelhante ao de um pião.

Segundo sua hipótese, as mudanças cíclicas no clima global produzidos pela precessão alteravam as condições locais de sedimentação, ora favorecendo a formação de calcário, ora promovendo o acúmulo de sedimentos mais finos, que deram origem à marga.

Embora rudimentares, essas ideias foram revolucionárias, pois sugeriram uma maneira de ‘medir’ o tempo geológico muito antes do advento das técnicas modernas de datação. Como o ciclo de precessão tem uma duração conhecida — cerca de 20 mil anos —, Gilbert sugeriu que a alternância entre camadas de calcário e marga poderia funcionar como uma espécie de ‘fita métrica’ do tempo geológico. De forma notável, sua estimativa se mostrou bastante próxima dos valores obtidos atualmente com métodos precisos de datação radiométrica.

Ilustração inspirado pelas descobertas sobre os ciclos astronômicos, Grove Karl Gilbert foi um dos primeiros a propor que camadas sedimentares poderiam registrar variações periódicas no clima e utilizar essa informação para medir o tempo geológico.
Inspirado pelas descobertas sobre os ciclos astronômicos, Grove Karl Gilbert foi um dos primeiros a propor que camadas sedimentares poderiam registrar variações periódicas no clima e utilizar essa informação para medir o tempo geológico. (Fragoso & Kuchenbecker (2025)/Divulgação)

A partir da década de 1960, geocientistas de todo o mundo se debruçaram sobre essa fascinante conexão entre o clima planetário, a dinâmica astronômica e o registro geológico. Tornou-se evidente que esse “relógio cósmico”, que resulta da interação entre a Terra e os corpos celestes vizinhos, modela ciclos repetitivos de deposição em bacias sedimentares.

Por meio do entendimento das variações orbitais da Terra – como a excentricidade (400 a 100 mil anos), a obliquidade (cerca de 40 mil anos) e a precessão (aproximadamente 20 mil anos) – foi possível explicar os padrões de mudanças nos níveis do mar, na circulação oceânica, nos ecossistemas terrestres e marinhos, na intensidade das monções e em outros fenômenos que influenciam a sedimentação ao longo do tempo.

Assim, os ciclos astronômicos ficam registrados na memória da Terra através das rochas, como se as camadas sedimentares fossem as ranhuras de um disco de vinil onde as informações sonoras estão gravadas fisicamente. Com o conhecimento teórico, os cientistas podem “passar uma agulha” sobre essas ranhuras e revelar a harmonia astronômica escondida nelas. Isso acontece por meio de métodos matemáticos sofisticados que conseguem decodificar as frequências orbitais e calibrar a passagem do tempo com uma precisão impressionante, analisando sinais deixados por antigos ambientes e padrões climáticos que aconteceram há milhões de anos.

Ao entender essas oscilações com tamanha clareza, é possível compreender como a Terra reagiu a essas mudanças no passado e, assim, obter novas perspectivas sobre como e quando as forças astronômicas modelaram o clima do planeta.

Ilustração de uma analogia para entender como os ciclos astronômicos ficam registrados nas rochas é o disco de vinil, cujas ranhuras armazenam fisicamente diversas informações sonoras. De forma semelhante, as camadas sedimentares arquivam, durante sua deposição, a evolução climática modulada por ciclos orbitais da Terra. Nesse contexto, a cicloestratigrafia busca reconhecer essas marcas naturais para reconstruir a história do planeta.
Uma analogia para entender como os ciclos astronômicos ficam registrados nas rochas é o disco de vinil, cujas ranhuras armazenam fisicamente diversas informações sonoras. De forma semelhante, as camadas sedimentares arquivam, durante sua deposição, a evolução climática modulada por ciclos orbitais da Terra. Nesse contexto, a cicloestratigrafia busca reconhecer essas marcas naturais para reconstruir a história do planeta. (Fragoso & Kuchenbecker (2025)/Divulgação)

Cicloestratigrafia: a ciência que decifra o tempo escondido nas camadas rochosas

Todas essas descobertas deram origem a uma ferramenta científica revolucionária para o estudo das camadas geológicas: a cicloestratigrafia. Essa disciplina combina os conhecimentos de astronomia e geologia para desvendar a história do planeta com uma precisão sem precedentes.

Utilizando análises cicloestratigráficas, cientistas conseguem construir um “relógio astronômico” detalhado, transformando cada camada de rocha sedimentar em um capítulo único na narrativa da Terra. Essa abordagem tem sido crucial no refinamento da Escala do Tempo Geológico, o que, na prática, significa ajustar e aprimorar o “calendário” da Terra, estabelecendo marcos muito precisos sobre quando certos eventos ocorreram.

Fotografia do trabalho de cicloestratigrafia de rochas carbonáticas marinhas do Permiano da Formação Dalong, China.
Trabalho de cicloestratigrafia de rochas carbonáticas marinhas do Permiano da Formação Dalong, China, publicado em um artigo na revista científica Nature em 2013. No artigo intitulado “Time-calibrated Milankovitch cycles for the late Permian”, Huaichun Wu e colaboradores mostram a identificação visual dos ciclos astronômicos em um afloramento. Observe como grupos de camadas identificadas como o produto da sedimentação durante ciclos de 100 mil anos (excentricidade curta) são reagrupados em ciclos de 400 mil anos (excentricidade longa). (Wu, H., Zhang, S., Hinnov, L. et al./Fragoso & Kuchenbecker (2025)/Divulgação)

Mas por que isso é tão importante? Porque compreender esses marcos possibilita reconstruir as condições ambientais do passado, revelando informações fundamentais, como temperaturas médias, concentrações de CO na atmosfera, variações do nível do mar e a extensão e derretimento das calotas de gelo.

Com esses dados, os cientistas podem criar um panorama detalhado das mudanças planetárias ao longo de milhões de anos. Mais do que um olhar sobre o passado, essa visão é essencial para compreender os processos naturais que moldaram a Terra, interpretar o presente e, mais urgentemente, projetar cenários futuros. 

Em tempos de rápidas mudanças climáticas, a cicloestratigrafia vai além de ser uma ferramenta para estudo histórico. Ela se posiciona como uma peça-chave para entender como a Terra responde a estímulos globais. Através da pesquisa cicloestratigráfica é possível distinguir alterações causadas por fenômenos naturais daquelas produzidas por influências humanas, oferecendo insights cruciais sobre a sensibilidade do planeta às mudanças ambientais. Assim, a cicloestratigrafia não apenas amplia nosso entendimento sobre a história geológica da Terra, mas também fornece elementos valiosos para mitigar e adaptar-se aos desafios climáticos do futuro.

No Brasil, a cicloestratigrafia vem se destacando como um campo de pesquisa em rápida expansão, graças ao empenho de pesquisadores de diversas instituições. Além de seu valor científico, a cicloestratigrafia tem mostrado ser uma ferramenta essencial para aplicações práticas na exploração de recursos naturais estratégicos. Dessa forma, o trabalho dos pesquisadores brasileiros contribui para o avanço do conhecimento geológico global, ao mesmo tempo em que impulsiona a economia e a gestão de recursos naturais no país, demonstrando como ciência de ponta pode ter um impacto direto no desenvolvimento social e econômico.

Na perspectiva de aplicarmos a lente da ciência para expandir nossas percepções sobre o tempo e o universo, é fascinante pensar que o próprio planeta em que vivemos é fruto de um processo cíclico que começou bem antes da formação da Terra e continua a moldar tudo que conhecemos.

A Terra, assim como todo o Sistema Solar, é o resultado de incontáveis gerações de estrelas que nasceram e morreram, deixando para trás uma herança de elementos químicos. Cada explosão de supernova lança uma nova “nebulosa” no espaço, uma nuvem de gás e poeira rica em elementos forjados nesses eventos cósmicos. Em um desses ciclos, há cerca de 4,6 bilhões de anos, uma nebulosa com uma composição química única existia em um canto tranquilo da nossa galáxia. Foi dessa nebulosa que surgiu o Sol e, ao seu redor, os planetas, incluindo a Terra.

Como dizia Carl Sagan, “o cosmos está dentro de nós. Somos feitos de matéria estelar.” Cada átomo em nossos corpos, cada molécula na Terra, é resultado desse processo grandioso e antigo. Somos, literalmente, poeira de estrelas, em uma jornada profunda de transformação cíclica.

Fonte: abril

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