Basta um barulho do lado de fora da casa para que (muitos) cachorros resolvam transformar isso num problema para todo mundo. Latem, fazem um escândalo, os humanos imploram por silêncio… Um estresse.
Mas não a cadela Stella. Diante dessa situação, ela se aproxima de um painel cheio de botões e usa a pata para pressionar um deles, que dispara uma gravação robótica de uma mulher que diz: “Lá fora”.
A dona da voz é a tutora, a americana Christina Hunger, que responde, calmamente: “Sim, Stella, teve um barulho lá fora, mas nós vamos ficar aqui dentro, tá? Dentro”. A cachorrinha não se dá por vencida e pressiona outro botão até que a gravação de “olhe” se repita nove vezes. Ela termina a discussão, exasperada, com os botões “vem” e “lá fora”.
Siga
O diálogo vem de um vídeo do Instagram de 2019, que teve milhões de visualizações e fez Hunger virar notícia global sob a manchete “Fonoaudióloga ensina cão a falar”. Era a primeira vez que tanta gente via um dispositivo como aquele painel de botões (embora, como vamos ver, eles não fossem bem uma novidade).
Na época, muita gente expressou a vontade de também conversar com seus cachorros. Mas há dois enganos nesse desejo: a certeza inequívoca de que Stella estava “falando” e a ideia de que os botões inaugurariam a comunicação entre humanos e cães – coisa que já acontece há pelo menos 15 mil anos.
Voltando no tempo
Mais ou menos nessa época, ancestrais dos cães (que eram parentes dos lobos) se aproximaram de assentamentos humanos na Eurásia para consumir restos de alimentos. Os humanos logo aprenderam a se beneficiar da proteção e da ajuda na caça que os animais poderiam oferecer.
No processo de domesticação, prosperaram as linhagens com características físicas e comportamentais que fisgavam a atenção (e o afeto) dos humanos. A cara de “cão pidão”, por exemplo, é cortesia de dois músculos na região da sobrancelha que não são encontrados em lobos – o que indica que o traço pode ter conferido alguma vantagem para esses bichos (1).
“Mesmo quando adultos, os cães mantêm características físicas juvenis, como olhos grandes e redondos, a cabeça proporcionalmente maior e traços que lembram muito os de um bebê humano”, diz Francisco Cabral, doutorando em psicologia experimental pela USP. “São características que julgamos fofas, e que, de certa forma, sequestram o nosso cérebro e ativam o instinto de cuidado parental.”

Milhares de anos de seleção artificial priorizaram ainda animais que usam olhares, apontam com a pata e o focinho, latem, rosnam, choram e interagem fisicamente com os humanos de forma intencional. Engana-se, então, quem acha que os cães precisam dos botões para se comunicarem. Mas como é que essa história surgiu, afinal?
Quando adotou Stella, Hunger percebeu que o adestramento dos cães passava por etapas parecidas com as que ela aplicava com seus pacientes – crianças e bebês com dificuldade de fala que aprendem a se comunicar por meio de ferramentas, como um tablet programado com palavras, desenhos e sons.
Tanto os bebês quanto os cães aprendem a identificar palavras-chave por repetição e exemplo. Ela começou a matutar, então, se não seria possível seguir o protocolo da terapia AAC (sigla em inglês para Comunicação Aumentativa e Alternativa) com Stella.
A empreitada começou com botões programáveis (adaptados dos usados com crianças) e treinamento de associação. Na hora de passear, por exemplo, a tutora pressionava o botão que reproduzia sua voz dizendo “passear”. A expectativa era de que, aos poucos, a cadela começaria a usar os botões
para “falar”.
Em alguns meses, Stella já parecia dominar conceitos e travar diálogos complexos. Hunger, que compartilhava o processo nas redes sociais, abriu um negócio de botões e lançou dois livros sobre o assunto.
A iniciativa viralizou. O timing foi propício: em 2020, quando a pandemia obrigou a maior parte dos humanos a ficar em casa com seus pets, os botões de comunicação viraram febre nas
redes sociais.
A Super conversou com duas brasileiras adeptas: Débora Lazari, que ensinou o seu cão Zeca (@jose.e.seusbotoes), e Carla Pires, tutora dos cães–celebridades Bambino e Rogerinho (@viralatacaramelo). As duas fazem vídeos dos bichos pedindo petiscos, passeios e outros comandos simples. Elas se inspiraram em Hunger e em outra protagonista desse fenômeno: a cadela Bunny.
Embora Stella tenha sido a primeira, Bunny certamente é a mais famosa. Sua conta no TikTok acumula 8,6 milhões de seguidores e 242 milhões de curtidas. A tutora, Alexis Devine, se uniu ao engenheiro de software e mestre em ciências cognitivas Leo Trottier para desenvolver novos painéis mais resistentes, que são vendidos pela FluentPet, uma empresa de Trottier.
Os botões redondos de plástico colorido são organizados em painéis hexagonais, com uma etiqueta para o tutor rotular os sons. A publicidade da empresa defende que o aparelho é uma forma de “dar palavras aos animais” para que expressem suas ansiedades,
sentimentos e dores.
No site da FluentPet, Bunny é uma das estrelas. Num vídeo, ela aperta os botões “ouch”, “stranger”, “paw” – “dodói”, “estranho”, “pata”. Diante da inquietação da cadela, Devine examina a sua pata e acha uma farpa de madeira. Bingo.

Os vídeos de Bunny se destacam pelas ideias aparentemente profundas. Em outra gravação, ela pressiona “quem”, “este” e encara a própria imagem no espelho. Choveu gente preocupada que, junto com a linguagem, Bunny tivesse ganhado também questões existenciais de consciência.
Os vídeos chamaram a atenção de pesquisadores do Laboratório de Cognição Comparativa de San Diego, da Universidade da Califórnia, que hoje conduz um amplo estudo sobre dispositivos de AAC para cães e gatos. Eles usam dados registrados automaticamente pelos painéis da FluentPet – que, segundo Trottier, podem ser acessados por cientistas de todo o mundo.
Algo que ajuda os pesquisadores é que, em alguns casos, os tutores usam câmeras de segurança para observar o comportamento do animal durante a interação com os botões. Afinal, faz diferença saber se depois de apertar “passear”, por exemplo, o cãozinho arranha a porta de casa. Uma associação como essa é importante para diferenciar se eles estão só apertando botões ao acaso ou se há algum tipo de linguagem por trás.
Uma opção intermediária, mais provável, seria a de que o cachorro entende a relação entre um botão e um determinado resultado (a alegria do tutor, um petisco). A partir daí, ele repete a interação, mas sem necessariamente saber o que cada palavra significa do mesmo jeito que os humanos sabem. O bom e velho condicionamento, só que mais sofisticado.
A base de dados da FluentPet tem 25 milhões de registros. Mas se por um lado o alto volume permite análises em uma escala inédita, por outro também representa um oceano de novas dificuldades metodológicas.
Pesquisas científicas buscam padronizar procedimentos e eliminar variáveis e fatores de confusão. É por isso que os pesquisadores costumam estudar um único animal por um longo período de tempo. O simples ato de levar um cão ao laboratório para repetir o que ele faz em casa pode causar estresse e distorcer os resultados, por exemplo.
Mesmo no ambiente doméstico existem inúmeras variáveis. Quando a família de Carla se mudou, Bambino estranhou o novo lar e a nova posição do painel. “Eu acho que isso o deixou confuso. Ele começou a usar os botões de uma forma um pouco menos intencional”, disse a tutora, que vai recomeçar o treinamento.
Outro fator de confusão metodológica é o fato de que os tutores podem personalizar o treinamento e as palavras que querem ensinar aos seus cães, tornando as comparações ainda mais difíceis.
Há outro viés tão óbvio quanto importante: os registros de cachorros que usam os painéis não são necessariamente generalizáveis para todos os cães. O outro pet da Carla, Rogerinho, nunca se interessou pelos botões utilizados pelo Bambino.
Até agora, os estudos publicados não permitem nenhuma conclusão revolucionária: apenas que as combinações de dois botões apertados em sequência não são aleatórias, acidentais ou meras imitações de humanos (2).
A interpretação fica por conta dos tutores, que podem ser bem criativos. Exemplo: três deles reportaram a interação “água” e “lá fora” no glossário colaborativo da FluentPet. Um achou que era uma referência à chuva; outro, à praia. O terceiro assumiu que era sobre xixi.
“Em alguns casos, as pessoas estão perdidas, projetando emoções, sentimentos, intenções e tudo mais nos cachorros”, opina o veterinário Alexandre Rossi, conhecido
como Dr. Pet.
Além das décadas de carreira pública explicando comportamento canino na televisão, Rossi tem moral para falar desse assunto em específico. No começo dos anos 2000, durante seu mestrado na USP, ele conduziu a primeira pesquisa do mundo para avaliar a capacidade de um cão de se comunicar por meio de dispositivos, com uma vira-lata que entrou para a história da ciência.
O mundo de Sofia
Mais de uma década antes de Stella, a cadelinha Sofia já apertava botões para se comunicar e pedir por passeio, brinquedo e comida. Seu painel era diferente: os oito botões eram quadrados, e cada um tinha um desenho diferente – símbolos chamados de lexigramas. Assim, além de associar ações aos sons das palavras, Sofia aprendeu a relacioná-las a cada lexigrama também.
Esse modelo foi inspirado nos utilizados em pesquisas sobre a linguagem de primatas e cetáceos (golfinhos e baleias). No século 20, muitos pesquisadores tentaram estabelecer se outros animais poderiam ter capacidades linguísticas semelhantes às humanas.
Após meses de treinamento e análise estatística, os pesquisadores da USP defenderam que Sofia conseguia usar a linguagem humana de forma intencional (3). Ela apertava os botões em contextos apropriados, fazia gestos complementares – como alternar o olhar entre a porta e os humanos para pedir para passear – e só utilizava o teclado na presença de humanos.
A pesquisa foi um marco na compreensão da cognição e da comunicação dos cães, mas nem sempre é incluída na história dos botões para pets. Por quê?
Há mais de uma explicação. A primeira é que Rossi interrompeu sua pesquisa em 2012, depois da morte trágica de seu orientador e grande amigo, o professor de psicologia da USP César Ades. Já Sofia morreu em 2014.
Trottier diz que os vídeos em português e em baixa qualidade da pesquisa de Rossi, feitos em 2008, podem ter limitado a repercussão. Foram as gravações em HD, editadas, com boas hashtags e seguindo trends que elevaram Stella, Bunny, Bambino e Cia. ao status de celebridades.
O efeito Clever Hans
No início do século 20, o professor Wilhelm von Osten viajava pela Alemanha anunciando que seu cavalo, Clever Hans, sabia as quatro operações fundamentais da matemática, dizia as horas, calculava frações, entendia o calendário, diferenciava notas musicais, conseguia ler, soletrar e entender alemão.
Em apresentações públicas, Von Osten perguntava coisas do tipo: “Hans, se o oitavo dia do mês cair numa terça, que dia vai ser a próxima sexta?”. O animal respondia batendo o casco no chão 11 vezes, sem erro, e a plateia ia à loucura.
O segredo parecia estar na capacidade de o cavalo enxergar Wilhelm (ou qualquer outro humano). Em testes liderados pelo psicólogo Carl Stumpf, a taxa de acerto de Hans sem poder ver ninguém caía de 89% para 6% (4).
O cavalo acertava o resultado não porque ele compreendeu de fato, mas sim pela capacidade de captar pistas sutis (e totalmente inconscientes) da linguagem corporal dos humanos conforme ele chegava à resposta desejada. Estava descrito o efeito Clever Hans, que pode ocorrer com humanos também (expressões faciais de um entrevistador podem influenciar as respostas de uma pessoa).
Esse é um problemão para experimentos científicos. Para evitá-lo, o padrão-ouro é o método duplo-cego, que minimiza variáveis que podem distorcer os resultados. Em testes de novos medicamentos, por exemplo, nem os participantes nem os pesquisadores sabem quem é o grupo controle, quais pílulas são reais e quais são placebo.
No caso dos painéis de botões, um jeito de evitar o Clever Hans é a cara de paisagem – treinar os cães com outros mecanismos de recompensa que não sejam a reação dos humanos. Também não dá para brincar de vidente e tentar decifrar a comunicação antes de os cachorros completarem a tarefa.
Esses fatores, essenciais em uma pesquisa rigorosa, são quase impossíveis de serem implantados por quem está fazendo os testes em casa, sem acompanhamento profissional e cheio de vontade de vivenciar uma cena viralizante.
“Quando eu analiso esses vídeos, consigo ver claramente o efeito Clever Hans e o viés de confirmação quando a pessoa vai lá e confirma o que o animal ‘falou’”, explica Rossi. “O que está de fato acontecendo é que o cachorro está vendo que ele consegue atenção, carinho, às vezes petisco, mas não necessariamente está usando o painel na forma correta, no sentido de mediar essa comunicação.”
Para além dos cachorros, há quem esteja fazendo testes ainda mais experimentais em casa, usando botões com gatos, porquinhos-da-índia, porcos e cavalos. Mas é pouco provável que algum deles consiga se comunicar com a gente dessa forma.

“Esses animais não passaram pelas pressões seletivas de cooperação social com os seres humanos na mesma intensidade que os cães”, explica Francisco Cabral, da USP. “Eles podem aprender a apertar e usar os botões pelo mesmo processo, por condicionamento, mas é provável que o uso seja muito mais instrumental, mais para pedir comida do que um uso social.”
Apesar de alguns Dres. Dolittle por aí, os estudos sobre uso de botões seguem focados apenas em cães e gatos. E Trottier não vê um grande problema nas controvérsias teóricas sobre o método difundido pela FluentPet. Ele defende que o número de usuários contribuindo para as pesquisas é tão grande que permite perceber grandes tendências com clareza, independentemente das variáveis e dos vieses.
“O que estamos tentando fazer é mudar o tom da conversa. Sair do papo sobre definições do que é linguagem por um momento e botar a mão na massa”, diz Trottier. “Pessoas podem ter suas próprias definições independentes [de linguagem]. Vamos fazer ciência empírica [baseada em observações, e não apenas em teorias], que pode ser replicada, e ver aonde chegamos, ver o que essas ferramentas permitem.”
Fontes livro How Stella learned to talk; artigo “Sobre a relação humano-cão”, de Cabral e Savalli; (1) artigo “Evolution of facial muscle anatomy in dogs”; (2) artigo “Soundboard-trained dogs produce non-accidental, non-random and non-imitative two-button combinations”; (3) artigo “A dog at the keyboard: Using arbitrary signs to communicate requests”; (4) livro Clever Hans (The horse of Mr. Von Osten): A contribution to experimental animal and human psychology.
Fonte: abril






