Após a forte reação de políticos, juristas e setores da sociedade contra a liminar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que inviabiliza a abertura pelo Senado de processos para destituir ministros da Corte, movimentos de bastidores e discursos públicos indicam que as cúpulas do Legislativo e do Judiciário articulam uma saída negociada para aprovar uma nova lei de impeachment.
O alvo da convergência entre Gilmar Mendes e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), é o projeto de nova Lei do Impeachment (PL 1.388/2023), de autoria do ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O texto foi elaborado por uma comissão de juristas comandada por Ricardo Lewandowski, ex-ministro do STF e atual ministro da Justiça do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Como presidente do STF à época, Lewandowski esteve à frente das sessões de julgamento no Senado do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e ignorou a perda de direitos políticos na condenação dela.
A proposta de Lewandowski e Pacheco visa atualizar a Lei nº 1.079, de 1950, mas traz vários pontos considerados polêmicos e autoproteção às maiores autoridades do Judiciário. Entre eles está o que endossa parte da decisão de Gilmar que blinda decisões judiciais de magistrados. A comissão de juristas propôs e Pacheco aceitou dispositivo que estabelece que ministros do STF não poderão ser punidos por crime de responsabilidade por interpretações da Constituição.
O projeto foi apresentado por Pacheco em março de 2023. Desde então, está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que realizou um ciclo de debates sobre o tema em setembro daquele ano.
Desde então, a proposta não conseguiu avançar, mas pode ganhar impulso a partir do atual contexto, com influência direta de ministros do STF e do presidente do Senado, mas que também deverá sofrer barulhenta resistência da oposição e juristas.
Gilmar Mendes entende que a Constituição de 1988 não recepcionou dispositivos da Lei do Impeachment, de 1950. Com base nesse argumento, determinou na última quarta-feira (3) que apenas o Procurador-Geral da República pode propor impeachment de ministros do STF, sustando o direito de qualquer parlamentar ou cidadão comum de apresentar denúncia, previsto na legislação. A decisão deve ser confirmada pelo plenário virtual do tribunal entre 12 e 19 de dezembro.
Um dia após a decisão monocrática, Gilmar afirmou em entrevistas que a Lei do Impeachment “caducou”, ou seja, perdeu a validade e, por isso, é necessário que o Congresso aprove nova norma para regular o afastamento de ministros do Supremo. Para ele, o volume crescente de pedidos contra magistrados indica que a saída mais adequada seria o Legislativo assumir a revisão do tema e descartar regras que, em sua avaliação, estão ultrapassadas.
A liminar de Gilmar foi amplamente vista como estratégia de blindagem para evitar que, com possível maioria conservadora no Senado a partir de 2027, ocorram cassações de magistrados. A medida também elevou o quórum necessário para aceitar denúncias no Senado, passando de maioria simples (41) para dois terços (54), tornando quase inviável qualquer processo de impeachment. Para críticos, trata-se de ato corporativo que fragiliza o sistema de freios e contrapesos da República e o controle sobre o Judiciário.
Segundo projeção de especialistas e dada a tendência de autopreservação da Corte, a maioria dos magistrados do STF — senão todos — deve manter a decisão monocrática de Gilmar em plenário virtual, marcado entre 12 e 19 de dezembro, confirmando a sua drástica restrição de impeachment dos ministros da Corte.
Mesmo que o Congresso tente reverter a liminar com novas leis ou até PECs, tais iniciativas provavelmente serão barradas pelo próprio STF como inconstitucionais, concretizando o bloqueio institucional.
Alcolumbre quer priorizar projeto do Senado em vez de novas propostas
Apesar da forte e imediata pressão de vários senadores por uma resposta institucional dura e imediata à decisão de Gilmar, incluindo uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que restabeleça de imediato os dispositivos da Lei do Impeachment alterados pelo ministro, Davi Alcolumbre adotou outro caminho em sua reação pública.
No discurso que fez na quarta-feira (3), embora tenha criticado a decisão monocrática e defendido que só o Congresso pode rever normas sobre crimes de responsabilidade, Alcolumbre priorizou duas frentes distintas: a atualização da legislação de impeachment e o avanço da votação de projetos que limitem decisões monocráticas no STF, um deles já aprovado pelos senadores.
Assim, ao mesmo tempo em que reforçou o respeito institucional entre os Poderes e cobrou reciprocidade do Judiciário, Alcolumbre sinalizou que sua resposta inicial passará, antes de qualquer PEC, pela articulação com líderes partidários para acelerar propostas legislativas já existentes que reforcem as prerrogativas do Senado e do Congresso. “Vou convocar reunião de líderes para avaliar todos os projetos que estão em tramitação”, avisou.
O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) teme que se forme uma concertação política para substituir uma reação efetiva à decisão de Gilmar por um acordo de bastidores que neutralize o embate institucional.
Segundo ele, o discurso de Alcolumbre sinalizou essa possibilidade ao priorizar a discussão de uma das leis em tramitação — o que, na prática, poderia esvaziar as PECs que buscam inscrever na Constituição prerrogativas que Gilmar anulou na legislação ordinária.
Na Câmara, Nikolas Ferreira (PL-MG) também apresentou uma PEC com esse objetivo, tentando impedir que a iniciativa seja engavetada por uma solução negociada que, para a oposição, manteria intocado o cerne do problema.
Senado já tem PEC para restabelecer regras suspensas por Gilmar
A apresentação da PEC do senador Cleitinho Azevedo (Republicanos-MG), que busca restituir explicitamente ao Senado a prerrogativa de receber e analisar pedidos de impeachment de ministros do STF, tornou-se a resposta política mais direta à liminar de Gilmar que concentrou essa iniciativa exclusivamente na PGR.
A proposta, apoiada por parlamentares de oposição e por parte da base insatisfeita com o protagonismo do STF, opera como resistência ao que consideram invasão de competências constitucionais, além de tentar sinalizar à opinião pública que o Congresso reagirá a medidas que restringem a participação popular e esvaziam a separação de poderes.
Cleitinho sustenta que sua PEC não apenas corrige o que vê como “distorção” criada pela decisão de Gilmar, mas também reafirma o papel do Senado como instância de contenção dos excessos do Judiciário, num momento de tensão crescente entre os Poderes.
Analistas temem esvaziamento da reação do Senado contra ingerência do STF
O cientista político Ismael Almeida alerta para o risco de o Senado aceitar a reforma da Lei de Impeachment como resposta à intervenção de Gilmar Mendes no ordenamento jurídico. Para ele, considerar essa alternativa equivaleria a uma capitulação diante da “agressão institucional” do STF, além de legitimar o argumento do ministro de que a legislação de 1950 estaria obsoleta e não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988.
Almeida afirma que o projeto elaborado pela comissão de juristas ainda traz problemas adicionais, sobretudo por impor barreiras quase intransponíveis à iniciativa popular. “O texto não resolve o principal dano da decisão de Gilmar, que foi impedir que qualquer cidadão denuncie ministros do STF”, observa. Isso porque a proposta equipara a denúncia individual a projetos de lei de iniciativa popular, que exigem milhões de assinaturas.
“Na direção contrária, a PEC do Cleitinho explicita na Constituição que qualquer cidadão ou senador pode apresentar a denúncia — prerrogativa prevista na lei de 1950, mas anulada por Gilmar”, afirma.
Almeida avalia que a primeira resposta institucional do Congresso à liminar deveria ser a aprovação de limitações às decisões monocráticas, prontas para avançar. No entanto, seu andamento depende de uma iniciativa do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e, eventualmente, de uma articulação direta do presidente do Senado com ele.
O advogado Ricardo Peake Braga, autor do livro “Juristocracia e o fim da democracia”, entende não ser possível escapar da gravidade dos fatos envolvendo a liminar de Gilmar e se deixar levar pelo argumento de que o problema estaria na Lei do Impeachment. “Primeiro, qualquer alteração na lei tem de ser discutida e aprovada pelo Congresso, mantendo o sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição. Segundo, não há qualquer inconstitucionalidade na lei atual”, sublinhou.
Para o especialista, nem o ministro nem o STF têm legitimidade constitucional para legislar. E acrescenta: a própria usurpação do Poder Legislativo nesse caso pode até configurar crime de responsabilidade e motivo de impeachment.
Fonte: gazetadopovo






