O âTĂĄ Lendo o QuĂȘ?â desta semana abre espaço para uma obra que nasce no coração de um dos perĂodos mais marcantes da nossa histĂłria. âNa Peleâ, da escritora e poetisa Luciene Carvalho, foi escrita em pleno isolamento da pandemia de Covid-19, um tempo de silĂȘncio imposto, de rotinas suspensas e de emoçÔes Ă flor da pele.
O livro carrega as marcas daqueles dias intensos: a urgĂȘncia de expressar o que poderia se perder, o medo que rondava as casas, a lucidez que sĂł a solidĂŁo Ă s vezes oferece e o desejo profundo de deixar um legado.
Para homenagear o Dia da ConsciĂȘncia Negra, o Primeira PĂĄgina traz a obra como forma de homenagem Ă força da literatura produzida por mulheres negras no Brasil. O livro acompanha os fluxos e percursos vividos por Luciene no isolamento, revelando uma escrita que nasce da urgĂȘncia de existir, de falar e de afirmar identidade em um paĂs que ainda evita olhar para suas prĂłprias camadas raciais.
Um livro nascido do confinamento
Foram 61 dias de escrita ininterrupta. Em 2020, âNa peleâ (2020, Carlini & Caniato Editorial), chegava ao mundo, antes mesmo de a ferida coletiva da pandemia começar a cicatrizar.
âA pandemia me deu a sensação de que eu podia morrer a qualquer momento. E esse livro Ă© como um legado. Algo que eu precisava deixar como parte da minha obraâ, relata a autora.
A autora conta que, nas primeiras semanas desse âaquilombamentoâ, quando quase nĂŁo havia saĂdas e nenhuma visita chegava, sentiu a garganta âentrar em colapsoâ e o coração de poeta pulsar de forma intensa, como se algo exigisse passagem.
Ela explica que queria falar sobre ser preta, dialogar com as pessoas negras do seu presente e, por meio dos versos, alcançar os âviajantes da Rota da Melaninaâ. Essa urgĂȘncia tomou força no mesmo perĂodo em que assistiu, estarrecida, pela televisĂŁo, joelhos pressionando pescoços negros, uma cena que, segundo ela, refletia sua prĂłpria sensação de nĂŁo conseguir respirar.
âNa Peleâ tambĂ©m propĂ”e uma travessia simbĂłlica pelo que significa existir num corpo negro no Brasil. A obra apresenta uma narradora que se desdobra, se confronta e se reinventa, como alguĂ©m que, metaforicamente, troca de pele para sobreviver. Luciene conduz o leitor por um percurso que mistura cotidiano, memĂłria e sensaçÔes profundas, revelando camadas de identidade que se acumulam como cicatrizes e renascimentos.
A cada pĂĄgina, a autora tensiona questĂ”es sobre pertencimento, autoconceito e o peso das mĂĄscaras sociais, criando uma jornada Ăntima que reverbera em quem lĂȘ. NĂŁo se trata de fantasia, mas de uma experiĂȘncia real de transformação: uma reflexĂŁo sobre como cada vivĂȘncia marca a pele, e como cada marca constrĂłi quem somos.
A narrativa acompanha a trajetĂłria da personagem Peça, mulher que carrega a habilidade simbĂłlica de âtrocar de peleâ um recurso literĂĄrio usado para revelar suas inseguranças, conflitos Ăntimos e tentativas de se reinventar. Ă medida que suas camadas vĂŁo sendo expostas, o leitor se depara com reflexĂ”es sobre pertencimento, fragilidade e as mĂĄscaras que todos usamos para navegar em um mundo que nem sempre acolhe.Â
A jornada da protagonista avança por transformaçÔes profundas, reviravoltas emocionais e questionamentos sobre como nos percebemos e como somos percebidos, conduzindo a uma busca intensa por aceitação, identidade e autoafirmação. No fim, a experiĂȘncia da personagem ecoa temas universais: a necessidade de mudar para sobreviver e a coragem de reconhecer quem realmente somos.
A voz por trĂĄs da obra
Considerada uma das maiores personalidades de Mato Grosso, a poetisa, dramaturga, performĂĄtica e escritora, Luciene Carvalho, Ă© uma das vozes mais potentes da literatura mato-grossense. Poeta, escritora, declamadora, diretora de teatro e atual presidente da Academia Mato-Grossense de Letras, ela reĂșne uma trajetĂłria com 15 livros publicados e reconhecimento consolidado nas artes da palavra.Â
Sua obra mais recente, Dona (Carlini & Caniato, 2018), confirma essa maturidade criativa e consolida seu nome entre as autoras mais importantes do estado.
AlĂ©m dos livros, Luciene se destaca pela forma singular como leva poesia ao palco: seus shows poĂ©ticos combinam declamação, figurino, elementos cĂȘnicos e trilhas cuidadosamente escolhidas, criando apresentaçÔes em que a palavra deixa o papel e ganha corpo, movimento e intensidade, sempre com o objetivo de tocar o pĂșblico.
Sua produção inclui tĂtulos como Sumo da lascĂvia; Aquelarre ou o livro de Madalena; Porto; Cururu e Siriri do Rio Abaixo (Instituto Usina); Caderno de caligrafia (Cathedral); Teia (Teia 33); Devaneios poĂ©ticos: coletĂąnea (EdUFMT); InsĂąnia (Entrelinhas); e Ladra de flores (Carlini & Caniato). Obras que, juntas, revelam a amplitude de uma escritora que transita da cena ao papel com a mesma força.
O Ăștero como pequena Ăfrica e a urgĂȘncia do olhar
A autora coloca a mulher negra contemporĂąnea no centro da narrativa. Um corpo marcado por uma histĂłria repetida, silenciada e ainda viva.
âO Ăștero das pretas brasileiras pode ser considerado uma pequena Ăfrica. De lĂĄ saĂram negrinhos e negrinhas que alimentaram o sistema de escravização. E essa escravização ainda existeâ, conta.
Para Luciene, o Brasil sĂł serĂĄ um paĂs justo quando encarar sua formação social, atravessada pela escravização e pelas desigualdades profundas que ela deixou como herança.
âEnquanto mais de 60% da população for pobre e nĂŁo tiver acesso ao mĂnimo, o Brasil nĂŁo serĂĄ seguro para ninguĂ©m nem para quem vive na carĂȘncia, nem para quem tem carros, casas, joias e fazendasâ, explica.
Um livro que continua atual
Quase cinco anos apĂłs o lançamento, a autora acredita que âNa Peleâ segue necessĂĄrio.Â
âEsse livro mantĂ©m sua contemporaneidade porque o Brasil se nega a olhar para a realidade que construiu. âNa Peleâ Ă© chamado para a conversa, para a discussĂŁo. Ă urgĂȘnciaâ.Â
Escrito como quem resiste, âNa Peleâ surge como obra-testemunho: Ăntima, coletiva e incĂŽmoda exatamente como precisam ser as narrativas que mexem com o paĂs.
Ao revisitar dores e urgĂȘncias que atravessam a população negra no paĂs, âNa Peleâ reafirma que a literatura tambĂ©m Ă© instrumento de enfrentamento. Ă um daqueles livros que permanecem mesmo depois da Ășltima pĂĄgina.
Ao transformar vivĂȘncias do confinamento em poesia e denĂșncia, Luciene Carvalho entrega uma narrativa que convida o leitor a sentir, pensar e encarar o Brasil que ainda somos. Em um mĂȘs marcado pela ConsciĂȘncia Negra, a obra reforça o poder da literatura como caminho de memĂłria, resistĂȘncia e voz.
Ao destacĂĄ-lo nesta data, o Primeira PĂĄgina celebra a escrita de Luciene Carvalho, e tambĂ©m a força de todas as mulheres negras que fazem da palavra um territĂłrio de existĂȘncia.
Fonte: primeirapagina






