Justificada pela necessidade de combater a exploração sexual infantil na internet, a proposta de criação do chamado âChat Controlâ chegou perigosamente perto de ser aprovada pelo Parlamento Europeu. Mas, no Ășltimo dia 8, o governo da Alemanha freou temporariamente o avanço da medida, argumentando que a vigilĂąncia sem suspeita prĂ©via Ă© incompatĂvel com o Estado de Direito. A decisĂŁo alemĂŁ recebeu apoio de paĂses como Ăustria, PolĂŽnia, Holanda e FinlĂąndia, que exigem profundas revisĂ”es no texto.
O Chat Control representa, em essĂȘncia, o dilema central da era digital: como equilibrar a segurança pĂșblica com a preservação das liberdades individuais. A proposta prevĂȘ o monitoramento de todas as mensagens privadas â textos, imagens e ĂĄudios â em busca de material ilegal.
O argumento Ă© nobre: proteger crianças de abusos. Mas, sob essa justificativa, abre-se o caminho para um sistema de controle total sobre o cidadĂŁo comum. Na prĂĄtica, trata-se do embriĂŁo de um regime de vigilĂąncia permanente â o primeiro degrau rumo a um Estado digital de monitoramento constante.
O propĂłsito declarado Ă© legĂtimo; as consequĂȘncias potenciais, assustadoras. A histĂłria ensina que nenhum regime de controle nasce pronto. O autoritarismo começa travestido de boas intençÔes, justificando a supressĂŁo de garantias individuais em nome da segurança coletiva. Desmonta-se gradualmente a ideia de que deve existir um espaço inviolĂĄvel entre o indivĂduo e o Estado â mas, sem esse espaço, toda liberdade se torna uma ficção.
Segundo a proposta, empresas como WhatsApp, Signal e Telegram seriam obrigadas a verificar todas as comunicaçÔes de seus usuĂĄrios em tempo real. Caso o sistema de inteligĂȘncia artificial identificasse algo potencialmente ilegal, o conteĂșdo seria automaticamente encaminhado Ă s autoridades competentes, sem qualquer revisĂŁo humana prĂ©via.
O mecanismo central Ă© o chamado âclient-side scanningâ, que analisa o conteĂșdo das mensagens antes de elas serem criptografadas, diretamente no celular ou computador do usuĂĄrio. O dispositivo pessoal se transforma em uma ferramenta de vigilĂąncia, acabando com a privacidade. Cada conversa, por mais banal que seja, torna-se potencialmente visĂvel pelo Estado â um ataque frontal Ă inviolabilidade das comunicaçÔes, atĂ© pouco tempo atrĂĄs considerada um pilar das democracias modernas.
A ironia Ă© que a criptografia, alvo do Chat Control, Ă© justamente o que garante a segurança e a privacidade dos cidadĂŁos comuns â valores expressamente protegidos pela Constituição da UniĂŁo Europeia. Ao enfraquecĂȘ-la, a proposta mina a segurança de todos, inclusive das prĂłprias crianças que pretende proteger.
Uma vez aberta essa brecha, nada impedirĂĄ que o mesmo sistema de vigilĂąncia seja usado para outros propĂłsitos, como o nosso bem conhecido combate Ă s âfake newsâ, Ă âdesinformaçãoâ ou ao âdiscurso de Ăłdioâ â termos vagos e politicamente maleĂĄveis.
HĂĄ ainda o problema dos falsos positivos. Nenhum algoritmo Ă© infalĂvel. Pais que compartilham fotos inocentes dos filhos podem ser denunciados, investigados e atĂ© ter contas bloqueadas injustamente. AlĂ©m de destruir reputaçÔes, esse tipo de sistema inundaria as autoridades com milhĂ”es de alertas inĂșteis, desviando recursos de investigaçÔes reais e sobrecarregando o sistema judicial.
Ă uma decisĂŁo polĂtica sobre o tipo de sociedade em que os europeus desejam viver: uma Europa aberta e livre, ou um continente moldado pela desconfiança e pelo controle
O Chat Control inverte a lĂłgica da justiça, tratando todos como suspeitos atĂ© prova em contrĂĄrio. Em vez de atacar a raiz do problema, transforma cada cidadĂŁo em potencial criminoso. Substituir investigação dirigida por vigilĂąncia massiva Ă© ineficaz e perigoso. O combate ao crime exige inteligĂȘncia, cooperação internacional e recursos humanos qualificados â nĂŁo algoritmos que espionem massivamente conversas privadas de pessoas comuns.
Além disso, os verdadeiros criminosos dificilmente seriam atingidos. Quem produz e distribui material de abuso infantil não utiliza canais convencionais: eles operam em redes anÎnimas, usando técnicas sofisticadas para ocultar suas atividades. As varreduras automåticas atingiriam o cidadão comum, não os predadores digitais. O resultado seria menos liberdade, sem mais segurança.
E o risco nĂŁo para aĂ. Uma vez legalizado o escaneamento de mensagens, nada impedirĂĄ que governos futuros ampliem a lista de conteĂșdos âsuspeitosâ. CrĂticas polĂticas, sĂĄtiras, protestos ou simples divergĂȘncias ideolĂłgicas poderĂŁo ser interpretadas como âameaças Ă ordem pĂșblicaâ. A lĂłgica de âproteger a sociedadeâ serĂĄ facilmente convertida em instrumento para reprimir dissidĂȘncias e patrulhar opiniĂ”es.
A consequĂȘncia serĂĄ o âefeito chillingâ â o esfriamento do debate pĂșblico por medo da vigilĂąncia. Sabendo que suas mensagens podem ser lidas, os cidadĂŁos evitarĂŁo discutir temas sensĂveis, autocensurando-se. O resultado serĂĄ a psicologia do medo descrita em 1984, de George Orwell. No romance, o Grande IrmĂŁo observa todos atravĂ©s de telas onipresentes. No mundo real, o Chat Control faria o mesmo por meio de algoritmos: cada mensagem seria potencialmente a semente de um relatĂłrio policial.
Em 1984, o MinistĂ©rio da Verdade reescrevia a histĂłria; na Europa de hoje, a inteligĂȘncia artificial pode reescrever o limite entre liberdade e segurança. A diferença Ă© que, desta vez, o controle nĂŁo virĂĄ pela força, mas pelo consentimento ilusĂłrio em nome da proteção.
Resumindo, o Chat Control se apresenta como um escudo contra o mal, mas, na prĂĄtica, cria a arquitetura legal e tecnolĂłgica de um panĂłptico digital â um sistema em que todos sĂŁo observados o tempo todo. Longe de fortalecer a democracia, ele abre caminho para abusos de poder e para a transformação da Europa em um espaço de vigilĂąncia permanente.
NĂŁo se trata apenas de uma proposta tĂ©cnica. Ă uma decisĂŁo polĂtica sobre o tipo de sociedade em que os europeus desejam viver: uma Europa aberta e livre ou um continente moldado pela desconfiança e pelo controle. O combate ao crime nĂŁo pode ser feito Ă custa da liberdade. A segurança verdadeira nĂŁo nasce da vigilĂąncia, mas do respeito Ă dignidade e Ă autonomia do indivĂduo.
Fonte: gazetadopovo






