Saúde

Pesquisadores brasileiros investigam potencial terapêutico do veneno de marimbondo no combate ao Alzheimer

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Há 25 anos, a neurocientista e professora da Universidade de Brasília (UnB) Márcia Mortari se dedica a uma missão inusitada: identificar as substâncias presentes nas toxinas dos marimbondos, também chamados de vespas. Tudo começou com a observação de que a picada desses bichos, que causa inchaço e vermelhidão em humanos, pode paralisar presas pequenas, como outros insetos. 

“Observando esse comportamento, a gente teve a ideia de começar a estudar compostos que são ativos no sistema nervoso, porque a paralisia vem da ação deste sistema”, contou Mortari em entrevista à Super

O sistema nervoso funciona como a central de comando e comunicação do corpo. É através dele, por meio impulsos elétricos, que o corpo recebe, processa e transmite informações. É um QG poderoso, que controla várias funções, desde movimentos e pensamentos até processos involuntários como batimentos cardíacos e digestão. 

Por isso, a ideia desde o início era isolar alguns compostos entre as centenas presentes no veneno dos marimbondos e identificar os mecanismos por trás de cada um. Esse processo não é nada simples: a missão já dura antes, e ainda está longe de acabar. 

Hoje, algumas dessas substâncias estão sendo estudadas para tratar epilepsia, mal de Parkinson, glaucoma e Alzheimer. Para essa última doença, que afeta mais de 55 milhões de pessoas no mundo e cerca de 1,2 milhão no Brasil, os testes são promissores. 

Conheça abaixo a história dos testes com venenos de marimbondos – e dessa equipe apaixonada pela ciência.

Isolando os compostos

Tudo começou com um composto extraído diretamente do veneno de marimbondo, chamado occidentalina-1202. Os pesquisadores detectaram que ele tem a capacidade de prevenir convulsões. Um de seus derivados, neurovespina, mostrou efeitos semelhantes, além de prevenir neurodegeneração e diminuir sintomas da doença de Parkinson. 

Uma versão da occidentalina-1202 foi modificada para se tornar um novo composto, um peptídeo (uma cadeia de aminoácidos mais simples que uma proteína) chamado octovespina. Ela tem efeitos semelhantes aos das substâncias citadas anteriormente e um resultado ainda mais excepcional na prevenção das primeiras mudanças fisiológicas do Alzheimer. 

Neste tipo de demência, o quadro começa quando o cérebro passa a acumular uma proteína tóxica chamada beta-amiloide; isso ocorre anos ou mesmo décadas antes dos primeiros sintomas da doença, como confusão e esquecimento.  Em condições normais, a beta-amiloide deveria ser eliminada naturalmente, mas a coisa começa a desandar quando ela não some e passa a se juntar em pequenos carocinhos entre as células cerebrais, os neurônios. 

Vários outros fatores influenciam no desenvolvimento e na evolução do Alzheimer, mas o consenso entre os pesquisadores é que esses aglomerados marcam o primeiro patamar da doença. Eles atrapalham a comunicação entre as células e desencadeiam uma reação em cadeia: o cérebro tenta se defender, gera inflamação e outras proteínas também começam a se desorganizar. Com o tempo, essa bagunça vai danificando as conexões e provocando a morte de neurônios.

Os testes mostram que octovespina, a versão modificada da occidentalina-1202, consegue interferir nesse mecanismo e diminuir a formação dos aglomerados de beta-amiloide. Quando injetada diretamente no cérebro de camundongos, ela também amenizou os sintomas da doença que os animais já exibiam, como esquecimento – um feito ainda mais difícil. 

“Um dos grandes limitantes das pesquisas de desenvolvimento de tratamentos [para o mal de Alzheimer] é justamente o fato de que elas não olham muito para a parte do comportamento. Inclusive, alguns medicamentos que foram aprovados melhoram essa redução da beta-amiloide, mas não reduzem os déficits cognitivos”, conta Luana Camargo, professora do Instituto de Psicologia da UnB que dedicou seu mestrado à pesquisa da octovespina contra o Alzheimer.

Hoje, a investigação dos compostos de marimbondos não se restringe às ciências biológicas e tem pesquisadores de várias áreas, espalhados por laboratórios dos Institutos de Ciências Biológicas, de Psicologia e de Física da instituição. Neste último, são feitos os estudos computacionais, que simulam as interações entre moléculas do cérebro e compostos que estão sendo testados.

“Nós usamos um pouco de mecânica quântica e mecânica clássica para fazer esses cálculos”, conta Ricardo Gargano, professor do Instituto de Física da UnB. 

Essa etapa funciona como um teste prévio que permite aos pesquisadores prever algumas consequências e otimizar (e economizar) os testes de bancada. Mas eles não são nada simples: para rodar as simulações, os pesquisadores precisam alugar a capacidade computacional de grandes computadores do Brasil e dos EUA.

“Além disso, atualmente também estamos testando modificações desses peptídeos. Às vezes, uma pequena modificação pode produzir um efeito muito melhor contra a doença de Alzheimer”, explica Yuri Só, pós-doutorando do Instituto de Física que é orientado por Gargano. 

As simulações indicam que a octovespina tem um potencial promissor para, além de reduzir a velocidade da agregação da beta-amiloide, desfazer os aglomerados que já existem. A possibilidade de reverter o primeiro passo do Alzheimer é um achado empolgante – e pense numa equipe empolgada. 

Os olhos que brilham fazem a ciência

Quando viu esse resultado da simulação, produzida por Só, Gargano conta que ficou “muito feliz mesmo” e “também um pouco em choque”. “Depois, fui fazer academia e fiquei rindo o tempo todo. Eu encontrava pessoas e elas diziam ‘você está mais alegre do que o normal’, mas eu não queria dizer o quê era”, conta o professor. 

Em entrevista à Super, os quatro pesquisadores, que são parte de uma vasta equipe que conta com mais algumas dezenas de especialistas, destacaram como são felizes pelo clima colaborativo e alegre das pesquisas que conduzem juntos.

Equipe coordenada pela professora Luana Cristina Camargo (ao centro) em parceria com pesquisadores de diferentes áreas.
A equipe coordenada pela professora Luana Camargo (ao centro, de calça cinza). (Luana Cristina Camargo/Arquivo pessoal)

Os dois físicos definem que a colaboração entre o campo teórico das simulações computacionais – e a prática – das bancadas de experimentos – é “o melhor dos mundos”

“Muitas vezes, quando estamos mais distanciados do experimental, os resultados das simulações que nós fazemos só são utilizados e concretizados muito posteriormente”, explica Só. “Trabalhar junto e ver os dois lados ao mesmo tempo com certeza é muito gratificante. É muito bom ver essa colaboração experimental com teórico: é a ciência acontecendo de fato.”

Os resultados promissores devem demorar para se concretizarem em medicamentos para humanos. 

Mais testes precisam ser feitos com animais para definir uma via de aplicação efetiva – afinal, na prática, não é viável injetar substâncias diretamente no cérebro de ninguém. Depois, testes sobre dosagens e segurança ainda são necessários antes de partir para os testes clínicos em humanos. Segundo Luana, a estimativa é de pelo menos mais uma década de pesquisa.

Mas o longo prazo não assusta a equipe, que conta com investimento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Eles devem continuar produzindo artigos, dissertações e teses, e se reunindo de altíssimo astral – com direito ao pão artesanal feito por Gargano.

“A coleta das vespas traz umas aventuras muito divertidas. A gente usa roupa [de proteção], mas, mesmo assim, elas são muito agressivas”, conta Mortari, aos risos. “A gente já teve que sair fugindo, porque elas se organizaram e vieram atrás da gente. Eu tive que correr mais de cem metros e me esconder no carro por horas até conseguir que elas se acalmassem e fossem embora.”

Para quem acha que 25 anos correndo de marimbondos raivosos é uma aventura divertida, dez anos não botam medo.

 

 

Fonte: abril

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