Saúde

Como definir e medir a inteligência: desafios e abordagens

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O texto a seguir foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência. Vale a visita ao site.

“QI é só um número inventado pra classificar pessoas”. “Esses testes só servem pra reforçar desigualdades”. “Cada um é inteligente de um jeito”. “Associar genética e inteligência é eugenia”.

Essas frases atravessam conversas de bar, salas de aula e timelines. São proferidas com convicção — e quase sempre com um profundo desconhecimento do tema. Céticos em relação à inteligência frequentemente desprezam ou desconhecem evidências robustas de que o desempenho cognitivo é amplamente explicado por fatores genéticos e de que o QI prediz sucesso educacional e socioeconômico ao longo da vida.

O curioso é que muitos desses críticos também ignoram estudos que poderiam reforçar seu próprio argumento: pesquisas mostrando que, apesar de relativamente estável, a inteligência pode ser ampliada pela educação — o mais poderoso fator ambiental conhecido. Este é o primeiro texto de uma série sobre o tema. Ele não vai discutir fórmulas psicométricas nem defender testes de QI. Seu propósito é outro: entender a origem de um debate que, até hoje, desperta paixões e suspeitas. A história dos testes de inteligência começa muito antes dos laboratórios — começa com uma ideia: a de que a mente humana poderia ser observada, comparada e, quem sabe, quantificada.

Londres, 1884. O ar cheira a carvão e a progresso. O século das máquinas é também o das medições: tudo ganha régua, cronômetro, escala. Entre os entusiastas da precisão está Francis Galton, primo de Darwin, que sonha em aplicar as leis da hereditariedade à mente humana.

Em Hereditary Genius (1869), Galton propõe que a “habilidade natural” — combinação de vigor intelectual, energia moral e capacidade para o trabalho — é herdada, como a altura ou a cor dos olhos. Se é herdada, pode ser medida. E se pode ser medida, pode ser aprimorada. Em Inquiries into Human Faculty (1883), descreve como simples testes de reflexo e acuidade sensorial poderiam indicar a eficiência mental de uma pessoa.

Um ano depois, monta um laboratório antropométrico na Exposição Internacional de Saúde, em Londres. Por um xelim, qualquer visitante podia medir sua força, tempo de reação e visão, saindo com um relatório impresso — uma espécie de protoavaliação psicológica.

Galton não falava ainda em “inteligência”, mas em aptidão natural, e acreditava que compreender o humano era classificá-lo. “O que a natureza faz cega e lentamente”, escreveu, “o homem pode fazer com previdência e gentileza”. Era o início de uma fé moderna: a de que até o espírito podia caber em números.

 

O século das medições

O impulso de medir não era apenas de Galton. Era o clima de uma época. O século 19 havia transformado o mundo em laboratório. A Revolução Industrial ensinara que tudo podia ser otimizado: o tempo do trabalhador, o ritmo das máquinas, o corpo humano. O progresso era uma questão de precisão.

A estatística, então recém-nascida, tornou-se a linguagem secreta dessa confiança. O astrônomo belga Adolphe Quetelet, meio século antes de Galton, havia criado o conceito de “homem médio” — a soma estatística de uma multidão de corpos e comportamentos. Em Sur l’Homme et le Développement de ses Facultés (1835), Quetelet afirmava que a regularidade das médias humanas era tão estável quanto as leis da física. A sociedade, como um planeta, seguia órbitas previsíveis.

Galton herdou essa fé e a levou mais longe. Em Natural Inheritance (1889), transformou a variabilidade humana em curvas e fórmulas. Foi ele quem cunhou a palavra “correlação”, tentando descrever matematicamente como traços — altura, força, agilidade — se relacionavam entre pais e filhos. A curva normal, um gráfico em forma de um elegante sino, tornava-se agora o retrato moral do homem moderno: o virtuoso no centro, os desviantes nas pontas.

A nova psicologia, ainda em busca de prestígio entre as ciências naturais, viu nesse método uma oportunidade. Medir a mente era, enfim, torná-la objetiva. A média virou ideal; o número, critério de verdade.

Galton acreditava que o mesmo princípio valia para as “faculdades mentais”. Se os sentidos e os reflexos podiam ser medidos, então também o pensamento poderia sê-lo. Em Inquiries into Human Faculty (1883), escreveu que “as faculdades de percepção e rapidez de movimento são índices da habilidade geral”. Nessa frase se escondia uma revolução conceitual: a ideia de que diferenças de desempenho mental refletem propriedades biológicas mensuráveis.

Galton queria, em essência, domesticar o acaso. Encontrar, nas leis da herança e nas curvas da estatística, um consolo para o caos humano. Mas, ao traduzir a mente em números, inaugurou uma pergunta que ainda não sabemos responder: o que exatamente medimos, quando dizemos estar medindo a inteligência?

Binet e seu teste

Paris, 1904. As escolas públicas francesas fervilham de crianças. Pela primeira vez, filhos de operários e camponeses dividem carteiras com os das famílias burguesas. O ideal republicano — liberdade, igualdade, instrução — ganhara corpo. Mas os professores enfrentavam um problema novo: como ensinar a todos, se nem todos aprendiam no mesmo ritmo?

O Ministério da Educação precisava de uma ferramenta para identificar os alunos que exigiam acompanhamento especial. Chamou Alfred Binet, psicólogo discreto, metódico e de vocação prática. Binet não era um teórico da mente abstrata; era um observador. Passava horas com professores e crianças, tomando notas, desenhando hipóteses, errando muito.

Com seu colaborador Théodore Simon, cria em 1905 o primeiro teste de inteligência, descrito em Les Enfants Anormaux (1907). Era uma lista simples de tarefas: repetir frases, nomear objetos, lembrar números, resolver pequenos problemas. O objetivo era comparar o desempenho de cada criança ao nível médio de sua idade. A diferença entre as duas medidas gerava um índice — a chamada “idade mental”.

O método parecia técnico demais, mas a intenção era pedagógica. Para ele, o teste era um instrumento diagnóstico, não um veredito. Servia para ajudar professores a ajustar o ensino, não para classificar crianças em castas cognitivas.

Havia nisso um otimismo muito francês: a crença de que a educação podia corrigir a natureza. Binet trabalhava em meio à atmosfera reformista da Terceira República, quando a escola era vista como a nova igreja do progresso. Medir, para ele, era apenas um modo de compreender melhor — e talvez de libertar.

Ainda assim, Binet intuía o perigo de seu próprio invento. Nas últimas páginas de Les Idées Modernes, adverte contra o uso do teste como selo de valor humano: “Não confundamos a medida momentânea com o destino da criança”. Era um aviso de professor, mas também uma profecia.

A história lhe daria razão. Poucos anos depois, do outro lado do Atlântico, o mesmo instrumento seria transformado em mecanismo de seleção — e a inteligência, em número.

A virada americana

A invenção de Binet atravessou o Oceano Atlântico como uma ideia e chegou aos Estados Unidos como uma promessa. Lá, encontrou um terreno fértil — e ambicioso. O país vivia a febre da eficiência: fábricas cronometravam tarefas, escolas padronizavam currículos, e a psicologia sonhava em tornar-se ferramenta de produtividade nacional.

Lewis Terman, professor da Universidade de Stanford, foi quem enxergou no teste de Binet uma mina de ouro científica. Em The Measurement of Intelligence (1916), ele traduziu, ampliou e padronizou as tarefas, criando o Stanford–Binet Test. Foi também ele quem popularizou o cálculo do quociente de inteligência, ou QI — uma razão entre a idade mental e a idade cronológica, conceito inicialmente proposto pelo alemão William Stern.

Com Terman, o teste deixava de ser um instrumento pedagógico para se tornar uma máquina de classificação. O QI ganhava aura de precisão, e sua linguagem numérica se ajustava perfeitamente ao espírito da América industrial. A ideia de que cada indivíduo possuía um “nível de inteligência” mensurável soava tão natural quanto medir o pulso ou a temperatura.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o psicólogo Robert Yerkes, presidente da American Psychological Association, levou o método a uma escala inédita. Criou, com uma equipe de colegas, os Army Alpha (testes verbais para nativos americanos) e Beta Tests (testes de figuras para gringos), aplicados a mais de um milhão e meio de soldados. O objetivo era alocar os recrutas em funções compatíveis com suas capacidades. Publicados em 1921, no Psychological Examining in the United States Army, os resultados pareciam científicos demais para serem questionados: médias por região, etnia, escolaridade. A inteligência tornava-se estatística de Estado. As conclusões — muitas delas marcadas por viés cultural e linguístico — foram usadas para sustentar políticas imigratórias restritivas na década seguinte.

Enquanto isso, na Inglaterra, Charles Spearman tentava explicar o que exatamente esses testes mediam. Em 1904, propôs que, por trás de todas as habilidades específicas, havia um “fator geral” de inteligência, o famoso g. Quem tinha mais g aprendia tudo mais rápido. Quem tinha menos, enfrentava o mundo em câmera lenta. Era o nascimento da teoria fatorial da mente — uma espécie de física das diferenças humanas.

Assim, o QI passou a circular em prontuários, dossiês, relatórios. A psicologia se industrializava. A fé americana na medição transformava a antiga esperança de Binet em sistema de triagem.

O ritmo da história acelerava. Medir deixava de ser um gesto de cuidado para se tornar um mecanismo de seleção. Pela primeira vez, o número de uma mente decidia seu lugar no mundo.

O século do QI

O número atravessou o século 20 como uma ideia irresistível. O QI escapou dos laboratórios e entrou na vida cotidiana — nas escolas, nas empresas, nas forças armadas. Revistas publicavam testes simplificados. Os parâmetros psicométricos se tornavam mais complexos e confiáveis. Pais discutiam as pontuações dos filhos como quem fala de altura. Em 1939, David Wechsler criou uma versão mais refinada, o Wechsler-Bellevue Intelligence Scale, depois transformado no WAIS, que ainda hoje é aplicado no mundo todo. As tarefas mudaram, mas a lógica permaneceu: traduzir a mente em percentis. Um número para ordenar a confusão da subjetividade.

Durante a Guerra Fria, o QI virou instrumento político. A corrida tecnológica entre Estados Unidos e União Soviética transformou a inteligência em capital estratégico. Testes eram usados para selecionar engenheiros, identificar talentos precoces, justificar políticas educacionais. Era o auge da fé psicométrica: a convicção de que o progresso dependia de localizar e cultivar as mentes mais brilhantes.

Mas o número também começou a gerar dúvidas. Estudos mostravam que ele não captava todo o espectro da capacidade humana — ignorava a criatividade, a sensibilidade, a sabedoria prática. Um gênio poderia ser também um tolo, afinal de contas. A crítica cresceu com Howard Gardner e sua teoria das inteligências múltiplas (1983), e depois com Daniel Goleman e a inteligência emocional (1995). A psicologia parecia tentar devolver à mente aquilo que, para esses autores, os números haviam tirado: complexidade.

Essas novas ideias fariam enorme sucesso fora da academia, mas com um preço — o afastamento do rigor empírico que havia dado à psicometria sua força original. (Mas essa é outra história, que merecerá seu próprio capítulo.)

Ainda assim, o fascínio persistiu. Mesmo os que criticavam o QI continuavam obcecados em medi-lo por outros caminhos — traçando novas métricas, redesenhando velhos testes. O número, longe de desaparecer, apenas trocou de disfarce.

Hoje ele sobrevive em formas mais sofisticadas: algoritmos de seleção de pessoal, modelos preditivos, escores genéticos. O impulso é o mesmo de Galton. A crença de que, se pudermos medir o suficiente, poderemos entender — e talvez controlar — o que há de mais invisível em nós.

O espelho e o enigma

Galton quis medir para ordenar o mundo. Binet, para compreender. Terman, para prever. Todos acreditaram que a mente podia caber em números — e que esses números revelariam algo essencial sobre as pessoas.

Um século e meio depois, o impulso continua. Medir o invisível é uma forma de fé, mas também de progresso. A psicologia ganhou rigor, método e poder de previsão. Parte da complexidade se perde, é verdade, mas sem o número também não haveria ciência, apenas opinião — e a psicologia já está cheia delas.

Felipe Novaes é psicólogo e professor da PUC-Rio. Divulga o melhor da psicologia científica no Garagem Psi. Atua no cruzamento entre ciência, filosofia e cultura, onde dados e mitos se estranham com frequência. Interessa-se por psicologia evolucionista, história das ideias e pela tensão entre razão e pertencimento em tempos de algoritmo

Fonte: abril

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