À medida em que a doença evolui, órgãos como intestino, reto, ovários e bexiga entram em processo inflamatório por conta dos focos. Nos casos mais graves, parede abdominal, pulmão, diafragma, umbigo e coração são acometidos pela endometriose. O projeto de lei nº 217/2024 que cria um Programa de Prevenção à Doença de Endometriose em Mato Grosso pode acelerar o diagnóstico – impedir consequências mais graves – com ações simples como a capacitação dos profissionais do SUS e conscientização da população sobre os riscos associados à doença.
De autoria do presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), o deputado estadual Max Russi (PSB), o texto seguiu para promulgação após ter o veto derrubado com 20 votos favoráveis contra 2, em setembro deste ano. Para a ginecologista e professora do curso de medicina da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Giovana Fortunato, o avanço na tramitação da lei estabelece um dos debates mais importantes sobre endometriose já realizado na Casa de Leis.
Desde 1999, Giovana se dedica às pesquisas sobre endometriose. A ideia de criar o ambulatório de endometriose do Hospital Júlio Müller, referência na especialidade em Cuiabá, nasceu durante o doutorado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. Quando terminou a pós-graduação, em 2015, decidiu tentar implantar o mesmo serviço.
“Comecei a pensar em como é uma doença impactante e que eu já tinha estudado tanto, conversei com o chefe de departamento para tentarmos montar um ambulatório espelho do hospital universitário da USP Ribeirão Preto em Cuiabá. Claro, não temos a tecnologia daquele hospital gigante, mas poderíamos adaptar para nossa realidade. Começou um ambulatório pequeno que foi crescendo”.
A lei ainda não foi publicada no Diário Oficial de Mato Grosso. O projeto chegou a ser vetado integralmente pelo Governo do Estado por inconstitucionalidade formal. Segundo a Procuradoria-Geral, a proposta criava despesas sem apresentar estimativa de impacto orçamentário ou compatibilidade com a legislação fiscal vigente. 
Russi usou o espaço de discussão da ALMT durante sessão ordinária para defender a derrubada do veto e insistir na pauta. De acordo com ele, o projeto não onera o Estado, apenas direciona ações dentro da estrutura que já existe.
“O projeto não cria novos órgãos nem gera despesas extraordinárias, apenas direciona ações dentro da rede já existente do SUS. A Constituição Federal, em seu artigo 24, inciso XII, é clara ao estabelecer a competência concorrente para legislar sobre saúde.”, explicou o parlamentar na ocasião.
Para a professora da UFMT, um programa de prevenção, na verdade, diminuiria a demanda do setor terciário (atendimentos de alta complexidade que exigem alta tecnologia e especialização).
“Acredito muito na assistência primária, se tivermos um suporte excelente, capacitação, enfermagem e profissionais capacitados, vai diminuir muito a demanda do setor terciário. Ou seja, vai chegar para nós algo que realmente não conseguiu ser resolvido na atenção primária. Se isso [o projeto de lei] for para frente, vai ajudar muito, porque nos setores primários já vão ter pessoas capacitadas para suspeitar, diagnosticar e tratar”.
“Nos casos mais graves que precisam de cirurgia teremos que indicar no setor terciário, isso o Hospital Júlio Müller recebe. A grande maioria dos casos conseguimos tratar clinicamente com medicação e mudança de estilo de vida. Essa lei veio para dar importância sobre o impacto da doença, é algo que vai conseguir mesmo fazer rastreio, detecção precoce e informação para as pacientes. Fala-se muito pouco sobre endometriose”, continua Giovanna, que se tornou referência no tratamento da doença em Mato Grosso.
Em 2018, Tathiane deixou o hospital em uma cadeira de rodas e carregando uma bolsa de ileostomia que a acompanhou por quase dois anos. Como uma das consequências da demora em encontrar um médico que não classificasse a cólica menstrual como “normal”, ela precisou retirar o intestino grosso e passar por uma reconstrução um ano depois. Desde então, já soma dez cirurgias relacionadas ao avanço da endometriose. Todas foram consequência do diagnóstico tardio.
“Falta de homem” está na lista das piores explicações que a endometriose da enfermeira recebeu em consultórios médicos. “Passei por essa fase de normalizar a minha dor, a normalizar viver com dor. Mas conforme fui vendo quão grave era e quanto afetava minha vida, não deu mais para normalizar. Para mim, não é normal. Já ouvi várias vezes em hospital que era ‘só uma cólica menstrual’, que era falta de homem, que eu precisava engravidar”, lembra Tathiane.
“Conforme fui aprendendo mais sobre a gravidade da doença, entendi que é uma dor que existe e compromete a vida da mulher de forma integral”, pondera. Com a qualidade de vida afetada pelos sintomas crônicos, precisou ainda retirar um dos ovários, forçando-a a desistir do sonho de ser mãe.
“Não poder ser mãe, para mim, foi muito forte, eu tentei de várias formas, fiz inseminação. As pessoas acham que a endometriose não causa tanto estrago na vida das mulheres, mas ela tem um impacto bem grande. Ela afeta tudo, você sente dor o tempo todo. Por falta de informação e diagnóstico precoce, a mulher fica sem saber o que está acontecendo”.
Décadas de dor, cólicas classificadas como ‘normais’ e sintomas que não eram levados em consideração nos atendimentos médicos também criam gatilhos psicológicos. Giovana explica que muitas pacientes do ambulatório de endometriose do Hospital Universitário Júlio Müller chegam psicologicamente fragilizadas.
“Quando comecei a ter cólica forte eu era só uma adolescente passando por aquela situação, minha irmã não tinha, mas eu não conseguia ir para a aula, tinha que ficar deitada em posição fetal, ficar encolhida para ver se a dor melhorava. Sempre achei isso estranho, mas como não sabia o que era endometriose e não tinha feito nenhuma investigação, para mim se tornou normal também. Em casa ouvia muito, no início, que eu estava ‘inventando a dor’, ‘não é possível que uma cólica doa tanto, menina’, minha mãe dizia”, recorda Tathiane.
As dificuldades e frases que ouviu até chegar ao diagnóstico não são exclusividade da experiência da enfermeira. Com 47 anos, a profissional da área previdenciária Rosemeire Ribeiro, começou a sentir cólicas incapacitantes. Durante o ciclo menstrual, quando não conseguia levantar-se da cama ou cumprir com as tarefas do dia, Rosemeire chorava.
“Quando não aguentava mais pedia para me levarem para o hospital. A minha dificuldade de ir para o hospital é que eu tinha arritmia cardíaca, então não podia tomar tramal e buscopan, me davam vários remédios e não passava. Foi um período muito longo de dor até que em 2022, depois de uma viagem, tive uma crise de dor e depois fiz a cirurgia para retirar os implantes da endometriose e o útero”.
Em uma das vezes que buscou ajuda médica, Rosemeire foi convencida a “esperar pela menopausa”. “Os médicos diziam que era normal e passavam medicação para dor. Outros diziam que eu já estava entrando na menopausa e que a menstruação já ia acabar, mas eu já estava com 50 anos, quando iria acabar? Eu teria que sentir dor até lá?”.
“As pessoas não acreditavam em mim, principalmente em casa, acham que é corpo mole ou exagero. Principalmente por sermos mulheres, quando falamos que estão com dor, ouvem e acham que é mentira”, lembra Rosemeire.
Em uma das vezes que procurou o posto de saúde do bairro Jardim Imperial, em Cuiabá, onde mora, uma das médicas suspeitou de endometriose. “Eu costumava procurar sempre o postinho porque estava com dor, mas ninguém nunca apontou isso até que essa médica desconfiou de endometriose. Ela me indicou procurar tratamento no Hospital Júlio Müller, mas eu ia todo mês nela, fiquei tratando aqui mesmo no bairro. Depois tirou a ginecologista do postinho e eu passei a ir no Hospital Santa Helena. Foi bom ter conseguido me tratar pelo SUS, porque é um tratamento caro”.
Por conta da falta de informação e capacitação, o diagnóstico de endometriose pode demorar, representando 84 ciclos menstruais e mais de 400 dias com dor crônica que, nos estágios mais avançados, passa a ocorrer fora do período menstrual. Conforme os implantes do endométrio aderem em órgãos, a lista de sintomas pode aumentar. Nos casos mais emblemáticos atendidos pelo ambulatório de endometriose do Hospital Universitário Júlio Müller, os focos foram encontrados no umbigo e no coração, onde provocavam hemorragias durante o período menstrual.
“A grande maioria do diagnóstico é anamnese, é você ter paciência de escutar a paciente. A paciente fala, grita na nossa cara, é o médico que não quer escutar. O exame complementar representa de 10% a 15%, hoje não podemos ficar só na caneta pedindo exame, ainda mais para as pacientes do SUS”, considera a ginecologista.
“É triste ver que uma mulher passou por tanto tempo de dor, poderia ter sido tratada, essa retrospectiva é o mais triste para nós como profissionais da área”, conclui.
Giovana afirma que o diagnóstico precoce pode mudar a vida de milhares de mulheres que ainda sofrem silenciosamente com os sintomas de endometriose. E é isso que o projeto de lei, ainda pendente de publicação, promete enfrentar, não apenas com instrumentos legais, mas reconhecendo que a dor “não é normal”.
“Acredito que essa lei é muito importante, é a primeira vez que se fala sobre isso, nunca teve nada. O custo para o Estado não existe, vai ter capacitação de médicos que já estão ali. Não vamos esperar mais essa paciente sofrer, ainda mais, para ter que fazer uma videolaparoscopia que o custo é muito maior. Vamos agir no início”.
Antes de descobrir a endometriose, mulheres ficam anos paralisadas, vivendo um ciclo de desconforto e dor, como explica a ginecologista. “Essa parte de normalizar os sintomas me deixa triste, porque como profissionais da saúde temos que ter empatia. A paciente não foi na UPA às 2h, porque quer estar ali, ela está ali porque está com dor. Provavelmente, para ela estar ali de madrugada é porque ela não suporta mais, ela já suportou o que deu, não está ali para pegar um atestado. Isso gera um impacto emocional muito grande”.
Antes do projeto de lei criado pelo deputado Max Russi (PSB) avançar, iniciativas parecidas que previam a criação do plano de prevenção contra a doença crônica ficaram pelo caminho. Propostas de autoria dos deputados estaduais Wilson Santos (PSD) e Elizeu Nascimento (PL) não foram para frente. A proposta de Wilson Santos foi vetada integralmente em 2023 e a do colega parlamentar foi encaminhada ao arquivo.
Neste ano, o deputado estadual Valdir Barranco (PT), fez uma indicação ao ministro de Saúde, Alexandre Padilha, para pedir apoio e políticas públicas para portadoras de endometriose no SUS. “Recebi diversos relatos de portadoras dessa condição há mais de dez anos, em que atestam a falta de tratamento adequado, a inexistência de suporte financeiro para as pacientes incapacitadas para o trabalho e a carência de políticas públicas que garantam acesso a medicamentos, cirurgias especializadas e acompanhamento multidisciplinar. A realidade das mulheres que dependem do SUS é de sofrimento contínuo, sem perspectivas de melhora”, justifica o parlamentar na indicação..png)
No texto, Barranco solicita que a endometriose seja incluída como prioridade na agenda de Saúde Pública, com ampliação de tratamentos de alto custo (como hormônios específicos e cirurgias laparoscópicas por equipes especializadas); a criação de um programa de auxílio financeiro para pacientes incapacitadas, similar a outros benefícios já existentes para doenças crônicas; e o fortalecimento da rede de atendimento com centros de referência em endometriose, integrando ginecologistas, urologistas, coloproctologistas e profissionais da dor crônica.
Em outro projeto de lei sobre o tema, o deputado estadual do PT propõe a criação de uma política estadual de orientação, diagnóstico e tratamento da endometriose. Entre as diretrizes, estão a divulgação de ações preventivas e terapêuticas, acesso universal a exames essenciais, como ultrassom endovaginal e ressonância pélvica, e o acompanhamento por equipe multidisciplinar, incluindo suporte psicológico e fisioterapia.
A política prevê ainda campanhas educativas, treinamento de profissionais da rede pública e apoio à criação de centros de referência nos municípios. O texto também estimula pesquisas científicas, parcerias entre setores públicos e privados, e a democratização de informações sobre tratamentos cirúrgicos, pós-operatórios e infertilidade.
Como envolve outras especialidades médicas, o tratamento da endometriose pode custar caro. “A paciente que tem dor crônica vai sempre no mesmo local quando a dor aperta, então já é um pouco conhecida, gera aqueles comentários: ‘essa paciente está todo mês aqui tomando medicação’. Precisamos de um olhar diferente para tentar entender por que ela está sempre ali”, reforça a ginecologista.
Fonte: Olhar Direto






