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O futuro da liberdade de expressão no Brasil: desafios e perspectivas

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Terão os brasileiros percebido o tamanho da agressão à liberdade de expressão consumada pelo Supremo Tribunal Federal na semana passada, com a conclusão do julgamento sobre o Marco Civil da Internet? É com tristeza que percebemos as poucas repercussões de um assunto que deveria estar na linha de frente das preocupações nacionais, mas não é visto como prioridade por motivos os mais diversos – isso quando não nos deparamos com manifestações explícitas de apoio ao teor da decisão do STF, seja por ignorância a respeito do sentido e do alcance da liberdade de expressão, seja por eventuais inclinações antidemocráticas.

Recordemos o que ficou decidido, especialmente em seu aspecto mais problemático: na tese publicada pelo STF, os ministros impuseram um modelo até então inexistente no Brasil, o “dever de cuidado” pelo qual os provedores (como mídias sociais) serão judicialmente responsabilizados se não apagarem por conta própria os seguintes tipos de conteúdo: condutas e atos antidemocráticos; crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo; crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação; incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas); crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio às mulheres; crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes; e tráfico de pessoas.

No Brasil, os cidadãos já não sabem exatamente o que podem e o que não podem dizer

Nem tudo é condenável nesta lista. Pornografia infantil ou aliciamento para terrorismo, por exemplo, são casos em que o “dever de cuidado” pode se aplicar sem problemas. Mas chamamos a atenção para uma característica desse tipo de crime cometido on-line: a ausência de necessidade de contexto ou interpretação. Basta colocar os olhos em um conteúdo para saber que se trata de pornografia infantil ou aliciamento ao terrorismo. Ainda que um provedor entregue a um algoritmo, por exemplo, a missão de rastrear e apagar imagens para impedir que eles causem dano por tempo razoável, o risco de erro (a exclusão de uma publicação que não seja de fato pornografia infantil, como alguma imagem relativa a pesquisa médica exibindo o corpo de uma criança) é bastante ínfimo, quase inexistente, bem como o prejuízo decorrente dessa exclusão.

O perigo – e não falamos de um perigo qualquer, mas de um grande perigo – é que os ministros impuseram o “dever de cuidado” a conteúdos que estão no extremo oposto dos dois crimes exemplificados anteriormente. “Ataques à democracia” e “incitação à discriminação”, “homofobia” e “conteúdos que propagam ódio às mulheres” são alguns dos exemplos mais evidentes quando se trata da liberdade de expressão. Saber se determinado conteúdo efetivamente pode ser considerado antidemocrático ou preconceituoso exige análise de contexto e interpretação. E, como já dissemos em ocasião anterior, “quanto mais difícil é estabelecer a existência de ilícito ou crime, quanto mais contexto é necessário para se fazer a análise correta, quanto mais subjetividade e interpretação estão envolvidas, maior deve ser o papel do Judiciário como árbitro final de disputas sobre a manutenção de conteúdos publicados”, ou seja, trata-se de análise que não pode, de forma alguma, ser entregue aos provedores, nem com funcionários humanos, muito menos com algoritmos.

Além disso, por mais que a tese defina exatamente quais são os artigos do Código Penal ou de outras leis penais cujo desrespeito configuraria “ato antidemocrático”, “incitação à discriminação” ou “homofobia”, a prática jurídica atual mostra que esses conceitos têm sido indevidamente alargados para calar muitos outros tipos de discurso. Recorde-se, por exemplo, todo o calvário vivido pelo youtuber Monark desde que propôs uma discussão sobre os limites da liberdade de expressão. Ou os processos movidos contra líderes religiosos que ousaram recordar no púlpito o que sua fé diz sobre o comportamento homoafetivo, ou sobre divindades de outras religiões. Ou o caso do empresário recentemente denunciado por criticar uma política de isenção fiscal.

Como resultado da prática corrente de promotores, procuradores e juízes (incluindo os próprios ministros do STF), nenhum brasileiro sabe ao certo o que pode ser considerada uma afirmação antidemocrática ou preconceituosa. Dizer que uma autoridade cometeu crime de responsabilidade e deveria ser cassada? Afirmar que certa instituição envergonha os brasileiros? Criticar um comportamento ou uma ação afirmativa? Fazer uma defesa filosófica de determinada posição sobre o casamento? Divulgar estudos científicos que embasem a oposição a certas políticas inclusivas (como a participação de atletas transgênero em esportes femininos, por exemplo)? Contar piadas? A resposta honesta é “depende” – no caso, depende da cabeça de quem investiga, quem denuncia e quem julga. O resultado é um efeito intimidatório em que a maioria da população pensará duas vezes antes de publicar algo sobre determinados assuntos-tabu.

Por mais que a lei seja direta quanto ao comportamento que constitui crime, esse alargamento indevido de conceitos como “ato antidemocrático” e “incitação à discriminação” cria uma vagueza prática. No Brasil, os cidadãos, como vimos, já não sabem exatamente o que podem e o que não podem dizer – esta situação é o exato oposto de um dos princípios básicos que norteiam a legislação sobre liberdade de expressão em democracias. Qualquer corte suprema de qualquer democracia derrubaria sem pestanejar uma lei que impusesse restrições vagas à liberdade de expressão, mas o STF brasileiro resolve transformar essas restrições vagas na regra vigente.

Não exageramos ao prever que o volume de conteúdos censurados se tornará muito maior do que já é atualmente

Caminhamos, assim, para um cenário em que a regra será apagar primeiro e analisar depois, isso quando houver análise. Para evitar a responsabilização decorrente de manter no ar conteúdos potencialmente problemáticos, os provedores tirarão do ar qualquer publicação que acione os alarmes dos algoritmos – por exemplo, que combine os termos “Supremo” e “vergonha”, ou que mencione urnas eletrônicas. O usuário, se e quando descobrir que foi censurado, pedirá que o conteúdo volte ao ar. Diante de uma provável negativa, terá de acionar a Justiça para que um juiz analise o texto e, eventualmente, ordene a publicação. Realisticamente falando, poucos terão a disposição de enfrentar o labirinto judicial brasileiro para conseguir colocar de volta no ar uma publicação censurada.

Por fim, o fato de o provedor não sofrer nenhum tipo de penalidade por ter tirado do ar um conteúdo que não deveria ter sido excluído serve apenas de incentivo para que a censura se torne a regra geral, pois não há estímulo algum à parcimônia na moderação de publicações. Não exageramos ao prever que o volume de conteúdos censurados se tornará muito maior do que já é atualmente; mas, ao mesmo tempo, isso ocorrerá de uma forma tão difusa – atingindo os internautas anônimos que ajudam a viralizar os conteúdos agora proibidos – que será quase impossível perceber o tamanho do monstro.

Se os ministros do Supremo não gostam do que dizia o artigo 19 do Marco Civil da Internet e preferem este modelo que acabam de impor, isso é algo que diz respeito apenas a eles mesmos: trata-se de opção pessoal, motivada talvez pelo déficit democrático e pela intolerância à crítica que eles já demonstraram em outras ocasiões. Mas considerar este modelo – que, como vimos, é profundamente antidemocrático e inconstitucional em qualquer democracia – como a verdadeira aplicação da Constituição, enquanto rejeitam a regra anterior (uma regra bastante razoável, diga-se) alegando que ela violava a carta magna, é uma barbeiragem jurídica que causará um desastre de grandes proporções para a liberdade de expressão no Brasil.

Fonte: gazetadopovo

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