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Cinema

Entrevista exclusiva: ‘Fúria no Festival do Rio 2025: os dilemas de uma mulher violentada’

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Dez, nove. Um grupo de amigos se diverte numa balada na Espanha na noite de Ano Novo. Oito, sete. Todos alegres graças ao álcool e às drogas, uma briga inesperada entre as luzes piscantes expulsa o grupo do lugar. Seis, cinco. Surge a ideia de estender as comemorações para a casa de Julia, melhor amiga de Alex. Quatro, três. Enquanto a música alta preenche o apartamento e já não se sabe quem são metade das pessoas dançando na sala, Alex procura imediatamente um banheiro. Dois. Pelos corredores, a caminho do lavabo dos fundos, Alex é empurrada para dentro de um quarto escuro. Um. Sozinha, com medo e no breu, ela é violada sexualmente por um homem do qual é incapaz de identificar.

É nessa contagem regressiva brutal que o filme dá início à jornada de luto de sua protagonista: pedindo que o espectador idealize e viva junto a dor de Alexandra. “Tinha visto muitos filmes em que a cena de violação era uma sequência muito sensacionalista”, comentou a diretora em entrevista exclusiva para o AdoroCinema. “Não queria criar mais e novas imagens de violência sexual na mente do público. Como se precisássemos alimentar mais nossos imaginários a respeito disso. Cogitei, então, não incluir a cena no filme, mas acho que, dessa forma, perderíamos muito em termos de ponto de vista

A solução que Gemma encontrou justamente convida o espectador para dentro da narrativa, assim como aproveita as potencialidades do meio audiovisual, explorando o som como recurso estético e criativo. “Percebi que uma forma respeitosa era fazer a sequência apenas pelo som, de forma orgânica, ou seja, a porta se fecha e tudo fica escuro. Não cortamos a imagem”, descreve Blasco os detalhes da montagem. “Você, como espectadora, não vê nada, mas está com ela, está sentindo da mesma forma, é muito desconfortável. É muito perturbador pois você imagina a seu modo o que não está vendo e cada imaginação é diferente

A Fúria trata de tema delicado através da força da forma cinematográfica

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De fato, ao recusar um visual explícito da violência sexual, a diretora e roteirista abre as portas da narrativa para os outros sentidos, traduzindo o que é indescritivelmente brutal através das sensibilidades do corpo. Um ponto de virada crucial da trama, por exemplo, ocorre graças ao aroma de um perfume.

Tinha muitas dúvidas se iria funcionar porque o cheiro é a coisa mais anti cinematográfica que existe, ou seja, não se pode ver, não se pode tocar, não tem textura que se possa filmar”, detalha. “Queríamos que fosse um filme muito sensorial, que você pudesse sentir no corpo e que ficasse no corpo. O filme é muito físico, eles se tocam muito, se vê muita pele, eles se machucam, sangram. Afinal, a violação é um trauma que fica no corpo

Fica claro que a aposta numa abordagem estética sensorial não apenas funciona, como é bem-sucedida graças ao fato de estar intimamente ligada à complexidade da personagem principal – excepcionalmente interpretada por . Segundo Blasco, sua intenção era mostrar um perfil de vítima diferente do esperado.

Ela não é uma mulher frágil, é uma mulher super forte fisicamente, tem muita energia, é desbocada, fala palavrões. É uma vítima imperfeita, usa drogas, bebe e transa, e isso a faz uma mulher bem mais real”, declara sobre Alex cuja trajetória é repleta de decisões questionáveis, oscilações emocionais e tentativas frustradas de superar o evento traumático que sofreu.

Por isso o filme é cru e violento. Queria explorar as profundidades da dor e da escuridão que esse processo desperta. Contar a partir das entranhas, desde dentro, de uma forma visceral”, completa Gemma que, com isso, fez das imagens de animais esquartejados e de uma encenação teatral de Medeia duas metáforas para a confusa vida interna da protagonista.

Protagonista de A Fúria utiliza a arte como canal de expressão para as dores do trauma

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Na trama, Alex, que é atriz, consegue o papel da personagem de Eurípides numa nova montagem da tragédia organizada no teatro onde trabalha. Durante o teste e os ensaios, a personagem demonstra a força catártica de canalizar na arte a raiva e a angústia do trauma.

Queria que ela tivesse uma expressão artística. Poderia ter sido musicista ou poeta, mas percebi que ela precisava ser atriz por conta do trabalho com o corpo e a voz, porque a violação acontece e permanece no corpo. E também para que ela pudesse brincar de se mimetizar com outra pessoa, brincar de ser outra pessoa. Assim, cheguei à tragédia grega”, comenta Gemma.

No mito grego, a história de Medeia retrata o drama de uma esposa enganada e bárbara perseguida que, ao mesmo tempo que se entrega para o amor, é tomada pelo ódio das contínuas traições que sofre. Medeia, então, diante da fúria pela infidelidade do marido, arquiteta um plano para se vingar que envolve matar seus próprios filhos para causá-lo dor. “É uma personagem com uma carga vingativa imensa e, precisamente por isso, é uma mulher imperfeita. Fazem-lhe muito mal e ela também faz muito mal aos outros. Chamam-lhe de bruxa. É uma vítima “ruim” e o que ela faz é reapropriar-se da sua dor”, enfatiza Blasco os paralelos entre Alex e Medeia.

Outras referências inspiraram Blasco a compor visual, estética e narrativamente a história, ajudando-a a conceber o tom sombrio e intenso próprio da temática delicada do estupro. As pinturas de Goya, o teatro performático da espanhola Angélica Liddell e o livro Teoria King Kong de Virginie Despentes foram algumas delas. Já a nível cinematográfico, o filme colombiano de e o longa chileno de foram referências mencionadas pela diretora que, sobre esse último, não deixou de pontuar o olhar afinado do diretor latino-americano para a perspectiva feminina, sentindo-se vista pela personagem sendo ela mesma vítima de uma violência sexual.

Em geral, eu encontrava muitos filmes que revitimizavam a vítima ou eram muito condescendentes, ou então histórias de superação”, conta a diretora sobre o início do processo de construção de A Fúria cujo ímpeto não se separa da história pessoal da cineasta. “Não é a minha história, mas parte de algo que eu vivi, que foi ter sido agredida sexualmente quando tinha 18 anos. Eu não precisava me colocar no centro, mas queria contar o que tinha sentido a nível emocional

É justamente no trabalho ficcional que Gemma Blasco constrói contrastes entre arte e realidade e demonstra a força da ficção como canal expressivo. “Na verdade, o que estou fazendo com o filme é o que a personagem dela [de Alex] faz com a peça teatral. Na ficção, você pode fugir da polícia, matar seus filhos e depois dormir tranquila

O Festival do Rio 2025 aconteceu entre os dias 2 e 12 de outubro e segue com seu tradicional chorinho, ou sessões de repescagem, até o dia 15 de outubro.

Fonte: adorocinema

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