O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve usar o discurso de abertura da 80ª Assembleia Geral da ONU, na terça-feira (23) em Nova York (EUA), para, entre outros pontos, voltar a defender a criação de um Estado palestino, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores. Segundo analistas, o presidente brasileiro também deve adotar um discurso de vitimização por causa das tarifas comerciais impostas pelo presidente americano Donald Trump e pela aplicação da Lei Magnitsty Global contra a rede de apoio do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Mas não está claro se Lula fará algum ataque direto ao presidente norte-americano.
No domingo, Reino Unido, Austrália, Portugal e Canadá passaram a reconhecer oficialmente a Palestina como um Estado e mais países devem adotar o mesmo movimento nesta semana. O objetivo dessas nações é pressionar Israel a aceitar um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Lula deve tentar capitalizar politicamente essa tendência em seu discurso, pois o Brasil reconheceu o Estado palestino em 2010, durante seu segundo mandato.
Mas a defesa do Estado palestino não deve melhorar a fragilizada imagem de Lula no exterior, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo. Em seu terceiro mandato, o petista tem trabalhado ativamente para se aproximar de regimes ditatoriais, como Irã e da Rússia, e assim tem acabado com a imagem de neutralidade que dava força à diplomacia brasileira no passado.
Foi essa tradição que garantiu ao Brasil a honra de fazer sempre o primeiro discurso de chefe de Estado na Assembleia Geral da ONU. Na prática, isso fará com que a fala de Lula seja seguida pela do presidente americano Donald Trump. Os Estados Unidos são agora o único integrante do Conselho de Segurança da ONU que apoiam Israel e não reconhecem o Estado palestino.
Analistas americanos já especulam qual pode ser a reação de Trump se for atacado por Lula na Assembleia da ONU. O posicionamento servirá de termômetro sobre como o presidente norte-americano deve reagir a países do Sul Global (em desenvolvimento) que se opuserem à política tarifária americana. Mas especialistas brasileiros avaliam que a tendência é Lula adotar uma posição de cautela, para não atrair novas sanções.
O doutor em Filosofia pela PUCRS, especialista em conflitos internacionais, Cezar Roedel, aposta que Lula adotará um discurso de vitimismo. “Deve ser um discurso meramente ideológico, fazendo críticas a Israel. É aí que veremos a coragem do Lula. Ele vai falar em substituir dólar, nova ordem mundial, antes do discurso de Trump?”, questiona.
As relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos estão em um momento crítico. Lula adotou uma posição de porta-voz não oficial dos Brics (bloco diplomático formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã) na defesa de uma nova ordem mundial sem o dólar como moeda principal de comércio global.
Trump elevou a tarifa de comércio com o Brasil para 50% logo após Lula reforçar esse posicionamento na reunião dos Brics em julho no Rio de Janeiro. Nesta segunda-feira (22), o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos anunciou que a aplicação da Lei Magnitsky Global ao ministro Alexandre de Moraes foi extendida à sua mulher, Viviane Barci de Moraes e à sua empresa, o Instituto Lex. Essa sanção proíbe indivíduos e empresas de ter acesso ao sistema financeiro ocidental e de fazer negócios com empresas que operem nos Estados Unidos.
Segundo Roedel, essas sanções podem ser ampliadas também para outros ministros do STF e pessoas que possam ter contribuído para a montagem da narrativa de perseguição política. Aliados de Moraes e burocratas do governo, como o Advogado-Geral da União (AGU), Jorge Messias, tiveram vistos americanos cancelados.
A comitiva brasileira também chega enfraquecida à Nova York, com integrantes impedidos de circular livremente pelo país. Um dos casos é o do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que conseguiu a liberação do visto somente na quinta-feira (18), mas afirmou ter desistido de ir a Nova York por ter sua circulação limitada a cinco quarteirões em volta de seu hotel.
Padilha e outras autoridades do governo tiveram vistos cancelados por participação no programa Mais Médicos, que é considerado por Washington uma forma de escravização de mão de obra cubana. À Gazeta do Povo, o Itamaraty afirmou que o tema dos vistos deveria ser tratado com o Palácio do Planalto, que não retornou a tentativa de contato da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
As sanções americanas são respostas de Trump não só a posição geopolítica do Brasil, mas à perseguição política ao ex-presidente Jair Bolsonaro e às ações de censura do Supremo Tribunal Federal (STF) nas redes sociais.
“Lula pode usar isso para se vitimizar e reforçar sua base em um tema que ecoa no eleitorado. O terreno ideológico do patriotismo vinha sendo ocupado pela direita e esse tema permite ao presidente apelar para públicos que antes não eram tradicionalmente seus”, aponta Alexandre Ostrowiecki, administrador com formação em política externa do Oriente Médio pela Universidade de Jerusalém.
Lula viu sua posição melhorar em pesquisas de intenção de voto assim que começou a adotar um discurso de defesa da soberania brasileira contra os Estados Unidos. Por isso, seu discurso na ONU pode ter como alvo mais o público interno brasileiro do que a audiência estrangeira.
Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que a influência brasileira no cenário internacional está muito reduzida.
“Ao abandonar a neutralidade, o Brasil perde a condição de árbitro. A imagem de país capaz de falar com todos os lados se dilui. Para Israel, um mediador pró-Palestina é como um juiz que entra em campo com a camisa de um dos times”, afirma Ostrowiecki.
Lula debate a questão palestina em conferência paralela à Assembleia da Geral da ONU
Antes de abrir a Assembleia Geral, Lula participou, nesta segunda-feira (22), da Conferência Internacional de Alto Nível para a Resolução Pacífica da Questão Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados, convocada por França e Arábia Saudita.
“Os atos terroristas cometidos pelo Hamas são inaceitáveis. O Brasil foi enfático ao condená-los. Mas o direito de defesa não autoriza a matança indiscriminada. Nada justifica tirar a vida ou mutilar mais de 50 mil crianças, nada justifica destruir 90% dos lares palestinos. Nada justifica usar a fome como arma de guerra, nem alvejar pessoas famintas em busca de ajuda”, disse Lula no evento.
Segundo o diretor do Departamento de Organismos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores, Marcelo Marotta Viegas, o Brasil vê a conferência como uma oportunidade para que mais Estados reconheçam o Estado Palestino, juntando-se aos mais de 147 países que já o fizeram.
“Na perspectiva brasileira, a paz sustentável só pode ser alcançada na região se ambas as partes puderem negociar em igualdade de condições, o que inclui a capacidade estatal da Palestina”, disse Viegas, em entrevista à imprensa.
Ao mesmo tempo que enfatiza seu engajamento na causa palestina, a participação de Lula no encontro também sinaliza, segundo especialistas, um alinhamento a blocos que desafiam a ordem internacional liderada pelos Estados Unidos.
Historicamente, o Brasil se beneficiou de uma imagem de país capaz de dialogar com diferentes polos geopolíticos. Essa condição, que já permitiu ao país liderar negociações comerciais e de paz, passou a ser corroída pelo antagonismo público de Lula em relação a Israel e ao alinhamento com ditaduras como a Rússia e o Irã.
O professor de Economia Internacional do Ibmec Brasília, João Gabriel Araujo, aponta que a adoção da posição claramente pró-palestina e anti-Israel pode afetar a imagem do Brasil como mediador imparcial, passando a ser mais associado a um lado específico do conflito. “Isso pode limitar a influência [do Brasil], especialmente em fóruns multilaterais”, avalia Araujo.
O posicionamento pró-Palestina, no entanto, pode trazer ganhos simbólicos para o Brasil em um determinado espectro político, na avaliação do professor João Gabriel Araujo. Para ele, a posição do governo brasileiro pode reforçar a imagem de defensor dos direitos humanos e de autodeterminação para apoiadores da esquerda. “Mas há o risco de impactos negativos como a tensão com parceiros estratégicos e possíveis sanções, o que pode afetar a influência internacional de interesses econômicos”, disse Araujo.
“A atual política externa está mais preocupada em se alinhar com ditaduras como o Irã, do que uma postura genuína com civis palestinos, muitos deles, inclusive, utilizados como escudo de guerra”, avalia César Roedel.
No mesmo sentido, Alexandre Ostrowiecki destaca que “ao ecoar narrativas usadas por regimes autoritários, o Brasil corre o risco de ser confundido com eles”. “É um desgaste de imagem: de potência pragmática, passa a parecer parte de um bloco ideológico pouco confiável para o Ocidente. É lamentável ver o governo de um país democrático na cama com alguns dos piores regimes da atualidade”, diz Ostrowiecki.
COP 30 sob risco de esvaziamento prejudica também o discurso ambiental
Além da ênfase na questão palestina, Lula tenta usar a Assembleia Geral da ONU como palco para promover a COP 30, a conferência global do clima, que será sediada no Brasil. No entanto, denúncias de superfaturamento e falhas na organização do evento ameaçam o protagonismo do país na agenda ambiental. Caso o encontro sofra esvaziamento, o Brasil corre o risco de perder relevância também em uma de suas principais apostas diplomáticas.
A agenda ambiental de Lula na ONU conta com a apresentação do Fundo Florestas Tropicais para Sempre e a participação em um evento sobre ação climática. A mobilização internacional em torno da COP 30, que será realizada em Belém no Pará, é uma prioridade do governo Lula.
No começo de seu terceiro mandato, Lula chegou a tentar emplacar a pauta ambiental como um de seus trunfos na agenda internacional. No entanto, diante de recordes de queimadas nos dois primeiros anos de governo, o discurso enfraqueceu e perdeu espaço.
A COP 30 realizada em meio a floresta amazônica seria, em tese, uma forma de mostrar a importância que o país dá ao tema. No entanto, a preparação para a conferência enfrenta um grande obstáculo: um escândalo de superfaturamento nas hospedagens, que pode levar à redução do número de delegações e esvaziar a COP30. A situação preocupa o governo, pois a expectativa é que o evento marque um novo capítulo na liderança climática do Brasil. A redução de participantes pode comprometer a relevância e o impacto da conferência.
Fonte: gazetadopovo