No Parque Tecnológico de Xerém, em Duque de Caxias, funciona uma estrutura discreta, mas com uma enorme importância para a pesquisa biomédica brasileira: o Banco de Células do Rio de Janeiro (BCRJ).
Ali, em tanques de nitrogênio líquido, são preservadas cerca de 400 linhagens celulares humanas e animais, mantidas sob monitoramento contínuo. É, na prática, o coração de inúmeros projetos científicos desenvolvidos dentro e fora do país.
Criado em 1980 pelo professor Radovan Borojevic, o banco nasceu quase por acaso. No Laboratório de Patologia Celular e Molecular do Instituto de Química da UFRJ, Borojevic reunia células para pesquisas em medicina tropical. Rapidamente, colegas começaram a pedir acesso a essas linhagens, até que o acervo informal se transformou em um serviço estruturado.
Hoje, o BCRJ é a única coleção de células humanas e animais que atua como prestadora de serviços no Brasil, e a maior da América do Sul. Está registrado na Federação Mundial para Coleções de Culturas (WFCC) e integra a rede internacional de biobancos da Organização Mundial de Saúde (OMS).
O acervo não se restringe a pesquisadores brasileiros. Já foram enviadas linhagens para países como Argentina, Peru, Chile, Bolívia e até Dubai.
Para que serve um banco de células?
Os bancos de células não são apenas depósitos de material biológico congelado. Eles fornecem amostras confiáveis e padronizadas para pesquisadores e para a indústria.
As células são a unidade básica da vida e, no laboratório, permitem que cientistas testem vacinas, medicamentos, cosméticos e outros produtos sem precisar usar animais. Também ajudam a entender doenças, desenvolver terapias e criar modelos de órgãos em laboratório.
Ter células autênticas, viáveis e livres de contaminação significa que experimentos podem ser repetidos com segurança e os resultados são confiáveis. Sem isso, muitas pesquisas teriam que depender de importações caras ou simplesmente não poderiam ser feitas.
No caso do BCRJ, são usados dois tipos principais de células: as primárias e as chamadas “imortais”.
As células primárias são extraídas diretamente de organismos – humanos ou animais – e se replicam por um tempo limitado, até entrarem em senescência (o processo natural de envelhecimento e morte celular). Já as linhagens imortais conseguem se dividir indefinidamente em laboratório, seja porque passaram por mutações naturais, seja porque foram modificadas por protocolos científicos.
“Essas linhagens estão presentes em diversas áreas da ciência e da biotecnologia”, explica Antonio Monteiro, presidente do BCRJ, à Super. “Elas substituem o uso de animais em testes de segurança e eficácia, servem para produção de vacinas, diagnóstico laboratorial e até transplante de tecidos.”
Paola Cappelleti, Supervisora do Laboratório de Toxicologia do BCRJ, acrescenta: “Toda célula saudável tem um ciclo finito. A imortal, por outro lado, pula o ponto da morte celular programada e se divide continuamente. Isso pode acontecer naturalmente, como em tumores, ou ser induzido em laboratório. Nem toda célula imortal é tumoral, mas todas compartilham essa capacidade de se replicar sem parar”.
Para que essas células fiquem disponíveis por décadas, o banco utiliza técnicas de criopreservação: são armazenadas a cerca de -150 ºC em nitrogênio líquido. Nesse ambiente, o metabolismo celular fica completamente interrompido, impedindo divisões ou mutações indesejadas.
“Cada laboratório pode ter protocolos diferentes, mas a lógica é a mesma: manter as células em temperaturas extremamente baixas para que elas fiquem viáveis e estáveis”, explica Paola à Super.
Em 2015, o BCRJ deu um passo adiante ao criar o Biobanco do Rio de Janeiro, voltado a reunir células primárias humanas representativas da população brasileira. Até então, a maioria das linhagens disponíveis eram importadas dos Estados Unidos ou da Europa, o que não refletia a diversidade genética local.
“No Brasil, há grande demanda por células de pele para produção de pele artificial em 3D para testes de cosméticos”, diz Ana Carolina Batista, supervisora do BioBanco do BCRJ, à Super. “Estudos mostram que células de pele negra respondem de forma diferente das de pele branca. Ter células que representem nossa variabilidade é essencial para produtos adequados à nossa população.”
Entre as células preservadas pela instituição, há uma especialmente simbólica: a HeLa, primeira linhagem celular humana imortal da história. Isolada em 1951 a partir de um tumor no colo do útero de Henrietta Lacks, uma afro-americana de origem humilde, suas células multiplicavam-se indefinidamente fora do corpo.
As HeLa se espalharam pelo mundo, ajudando a desenvolver tratamentos médicos, testes espaciais e produtos farmacêuticos. “Foi uma célula pioneira em diversos estudos e na produção das primeiras vacinas contra poliomielite, por exemplo. Continua ativa em laboratórios há mais de 70 anos”, lembra Monteiro.
Mas o caso também traz dilemas éticos: a família de Henrietta só tomou conhecimento do uso das suas células anos depois, levantando a discussão sobre quem é realmente dono do material. Hoje, no Brasil, biobancos são rigidamente regulados. Não se fala em “doadores”, mas em participantes de pesquisa ou concedentes, que mantêm a propriedade do material.
“Mesmo que alguém tenha autorizado o uso das células, pode voltar atrás a qualquer momento e pedir o descarte. O participante continua sendo o proprietário , explica Ana Carolina.
Na prática, o BCRJ coleta principalmente restos cirúrgicos que seriam descartados, como fragmentos de pele de prepúcio, cordões umbilicais ou pedaços de osso removidos em cirurgias. Esses tecidos são processados em laboratório, suas células são isoladas, multiplicadas e, depois, congeladas em tanques de nitrogênio líquido a -196 ºC. Assim, podem ser preservadas por décadas para uso em pesquisa.
A distribuição também segue regras rígidas. O BCRJ não vende células – apenas cobra pelo serviço de extração, manutenção e preservação, já que é uma organização sem fins lucrativos. Além disso, só repassa o material a pesquisadores que tenham projetos aprovados em Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e validados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), via Plataforma Brasil.
Fim dos testes em animais?
Em julho deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que proíbe o uso de animais em testes de cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes. O texto, que tramitava desde 2013 no Congresso, determina que os estudos com animais não poderão mais ser considerados para fins de segurança ou eficácia.
A única exceção será quando se tratar de regulamentações não cosméticas, nacionais ou estrangeiras. As autoridades sanitárias terão dois anos para implementar métodos alternativos, difundir seu uso no país e fiscalizar a adoção das novas práticas.
O BCRJ já vinha se antecipando a esse cenário. “O Departamento de Toxicologia foi criado em 2019. Pensamos: temos as células. Por que não desenvolver, então, os testes de eficácia e segurança que a legislação exige para qualquer produto?”, explica Paola.
Ela lembra que, por muitas décadas, o “padrão ouro” foi o uso de animais, mas esse modelo vem se mostrando falho – já que o animal não representa a fisiologia humana.
“Cerca de 90% dos novos materiais para uso humano não passam nos ensaios clínicos finais, apesar de terem funcionado em animais”, acrescenta Ana Carolina. “Isso mostra a dificuldade de traduzir os resultados para a prática clínica. E essa ineficiência pesa no bolso: os insucessos acumulados durante a pesquisa se refletem nos altos preços de medicamentos e tecnologias nas prateleiras.”
“E mesmo os que chegam ao mercado muitas vezes acabam sendo retirados por toxicidade inesperada ou ineficácia”, afirma Paola, que também menciona a questão ética: “O animal não escolhe participar, não pode interromper o experimento, e quase sempre tem o óbito como destino”.
Essa mudança de paradigma se traduz, na prática, em novos modelos laboratoriais já reconhecidos internacionalmente. O setor de toxicologia in vitro do BCRJ trabalha apenas com metodologias alternativas normatizadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) e pela Organização Internacional para Padronização (ISO). São testes de corrosão e irritação em pele ou córnea feitos em modelos celulares tridimensionais, por exemplo, que substituem os coelhos e camundongos usados no passado.
Se, por um lado, o Brasil já dispõe de métodos alternativos validados internacionalmente e reconhecidos em solo nacional, por outro, a aplicação prática dessas regras esbarra em um problema recorrente: a falta de fiscalização.
“Temos resoluções normativas que reconhecem os testes alternativos e a lei de crimes ambientais que determina sua obrigatoriedade sempre que existirem métodos substitutivos. Mesmo assim, ainda há laboratórios que continuam realizando testes em animais”, aponta Paola.
Para ela, não se trata de má-fé generalizada, mas de falhas estruturais: falta de recursos para contratar fiscais, ausência de campanhas que informem a população sobre como denunciar, e até mesmo um corporativismo dentro do meio acadêmico. “Muitas vezes, colegas sabem que outro laboratório está fazendo o teste em vivo sem necessidade, mas preferem não denunciar. É preciso mudar essa cultura”, defende.
A supervisora do laboratório lembra que a autorização para o uso de animais depende dos Comitês de Ética no Uso de Animais (CEUAs), responsáveis por avaliar cada projeto. O problema é que, segundo ela, esses colegiados ainda aprovam pesquisas mesmo quando já existem alternativas reconhecidas.
Ana Carolina ressalta ainda que, mesmo antes da sanção da lei de 2025, o Conselho Federal de Medicina Veterinária já havia publicado normativas que proibiam testes em animais para cosméticos e produtos de higiene pessoal, com prazo de cinco anos para adaptação. “Esse prazo acabou, mas, pela falta de fiscalização, muitas instituições seguiram usando animais. Agora, com a lei federal, a expectativa é que finalmente haja uma mudança prática, ainda que restrita a esse setor específico”, observa.
Financiamento
O maior obstáculo para que biobancos e métodos alternativos a testes em animais se consolidem no Brasil é a falta de financiamento estável.
Para Ana Carolina, a ausência de diálogo entre ministérios e a falta de compreensão, por parte de quem decide os editais, sobre a importância dos biobancos é um gargalo estrutural: “Esses materiais são a base da pesquisa acadêmica e da indústria. Sem eles, não há inovação. Mas muitas vezes quem libera os recursos não tem dimensão dessa abrangência.”
O impacto aparece de forma prática: como instituição sem fins lucrativos, o BCRJ sobrevive com recursos próprios, prestando serviços e oferecendo cursos de formação. Mas a expansão fica comprometida.
“Projetos para desenvolver novos modelos, como os sistemas tridimensionais e de microfluídica – que simulam tecidos e vasos sanguíneos em chips de laboratório – são caros e exigem mão de obra altamente qualificada. Sem investimento, o desenvolvimento avança lentamente”, diz Ana Carolina.
Monteiro concorda que o problema não é ausência de políticas, mas de continuidade. Ele cita iniciativas como a Rede Brasileira de Centros de Recursos Biológicos, criada há cerca de 15 anos, que chegou a capacitar coleções estratégicas – incluindo o BCRJ – mas desapareceu com a troca de governo. “O Brasil não tem um programa de Estado estável, abrangente e de longo prazo. Existem portarias, políticas setoriais, mas nada que garanta sustentabilidade”, critica.
O resultado é um círculo vicioso: coleções biológicas fundamentais para vacinas, terapias avançadas e biotecnologia não conseguem investir em infraestrutura de ponta, como Laboratórios com Boas Práticas de Fabricação (BPF).
Com isso, o país gasta milhões importando lotes de células e insumos que poderiam ser produzidos internamente. “O reconhecimento da importância dessas coleções é baixo, assim como acontece com a ciência de forma geral”, resume Monteiro.
Mesmo com recursos limitados, o BCRJ demonstra que é possível fazer ciência de ponta no Brasil. Para o presidente da instituição, essas coleções são pilares da ciência e “servem como um componente essencial de infraestrutura científica para as áreas da biotecnologia e das ciências da vida”.
Sem o BCRJ, pesquisas podem ser atrasadas, inviabilizadas ou encarecidas. “Quando uma coleção fornece células para o seu país, ela acaba sendo uma fonte desse material biológico extremamente importante para a ciência e o desenvolvimento”, conclui Monteiro.
Fonte: abril