Este assunto deveria estar tirando o sono de todo mundo: a adoção e o potencial uso da moeda digital centralizada como ferramenta de controle social.
Na semana passada, foi noticiado que a Suécia e a Noruega, que lideravam a transição para uma sociedade sem dinheiro físico, deram um cavalo de pau e passaram a incentivar a população a voltar a utilizar dinheiro em espécie.
A justificativa é a preocupação com o aumento de ataques cibernéticos, que podem colocar em risco uma economia totalmente digitalizada. Ataques massivos poderiam comprometer o sistema e paralisar a economia, causando bloqueios em transações essenciais e impedindo indivíduos e empresas de acessarem suas contas.
Os governos dos dois países agora reconhecem a importância de preservar o dinheiro físico como recurso indispensável para a estabilidade econômica e a própria segurança nacional. Sobretudo em um contexto de instabilidade global, a dependência integral da moeda digital, sem alternativa física, pode resultar em cenários catastróficos.
Mas o problema é muito maior que a vulnerabilidade dos sistemas. A moeda digital centralizada pelo governo cria as condições para um modelo de vigilância estatal sem precedentes. Para entender os riscos potenciais da adoção da moeda digital, é preciso prestar atenção no que acontece na China, que está implementando o yuan digital (“e-CNY”).
O governo chinês já exercia um alto nível de vigilância sobre a população, e a moeda digital aumenta ainda mais esse controle. Hoje, o Estado pode bloquear ou restringir gastos de determinados grupos, ou indivíduos, por motivações não apenas econômicas, mas também políticas.
Na China, como se sabe, um “sistema de crédito social” monitora e classifica todos os cidadãos e empresas, concedendo ou retirando benefícios com base em seu comportamento e nas opiniões que emite. Recompensas para os “bons cidadãos” incluem acesso facilitado a crédito, oportunidades de emprego, acesso a melhores escolas e até autorização para viajar.
Basta dizer que, desde 2018, mais de 20 milhões de pessoas já foram impedidas de comprar passagens de trem e avião devido à baixa pontuação social. Punições para os “maus cidadãos” também incluem restrições a compras, bloqueio de passaportes e limitação de acesso a serviços básicos.
A moeda digital pode ser usada para persuadir indivíduos a evitar condutas inconvenientes – se é que vocês me entendem
O yuan digital também permite ao governo condicionar o uso do dinheiro pelos cidadãos, porque todas as transações podem ser rastreadas em tempo real. Isso significa que o governo sabe exatamente onde, quando e como uma pessoa gasta – o que acaba com a privacidade, o anonimato e a liberdade financeira.
Em algumas regiões da China já existem versões da moeda com prazo de validade, isto é, o dinheiro expira se não for gasto dentro de um prazo determinado. O governo usa esse mecanismo para incentivar o consumo imediato, garantindo que o dinheiro circule mais rapidamente na economia, se julgar necessário.
Além do prazo de validade, o governo também pode programar os gastos das pessoas de outras maneiras, impondo, por exemplo, limites geográficos ou seletivos: o cidadão com baixa pontuação social pode ser impedido de gastar fora de seu bairro, ou de comprar produtos, ou serviços de determinadas empresas.
Em algumas cidades chinesas, cidadãos que pagam multas de trânsito atrasadas ou compram produtos considerados “imorais” podem ser punidos, sem aviso.
Pessoas que não pagam empréstimos ou criticam o governo também podem sofrer sanções. Quem participa de protestos pode ter sua conta bloqueada ou seus gastos severamente limitados. Isso é feito diretamente pelo governo central, sem depender de bancos comerciais.
Já empresas com baixa pontuação social não conseguem pagar fornecedores nem obter empréstimos. Empresas incluídas em “listas negras” do governo podem ter suas contas congeladas automaticamente, sem necessidade de decisão judicial e sem possibilidade de recurso.
Em outras palavras, o yuan digital pode ser (e é) usado para persuadir indivíduos e empresas a evitar condutas inconvenientes – se é que vocês me entendem. É uma forma de coagir indivíduos e empresas a um alinhamento integral com o governo, desencorajando qualquer comportamento ou opinião dissidente.
Resumindo: o yuan digital não é apenas uma moeda digital comum – ele é um instrumento de controle político e de conformidade social. Isso torna o modelo chinês um dos mais sofisticados e invasivos do mundo, em termos de controle da vida financeira dos indivíduos.
A longo prazo, isso pode mudar completamente o funcionamento do sistema financeiro global, já que outros governos podem seguir o mesmo caminho. Se implementado em larga escala, esse modelo levaria a um novo padrão global, com moedas digitais monitoradas pelo Estado substituindo o dinheiro tradicional. A moeda se tornaria assim uma ferramenta de controle totalitário, em vez de um meio de troca neutro e descentralizado.
Fonte: gazetadopovo