O Brasil pós-pandemia atravessa um momento crítico na gestão dos recursos públicos, sem perspectivas de retorno à normalidade. Em um país onde 33,1 milhões de pessoas vivem na pobreza extrema, segundo dados do IBGE de 2023, consolidou-se uma casta privilegiada e voraz na sociedade brasileira, que consome recursos públicos de forma escandalosa e sem pudor. Uma verdadeira elite feudal moderna que se perpetua às custas do sofrimento da população.
Os supersalários do Poder Judiciário, do Ministério Público e de carreiras correlatas representam não apenas um desrespeito ao erário, mas uma afronta à dignidade de milhões de brasileiros que sobrevivem com migalhas enquanto sustentam essa aristocracia togada. Uma elite que, a cada momento, cria novos artifícios “legais” — porém absolutamente imorais — de enriquecimento às custas dos miseráveis.
Os números dessa farra desenfreada são estarrecedores. Em 2024, segundo dados do próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juízes receberam salários acima de R$ 100 mil em 63.816 ocasiões.
Mesmo considerando apenas os valores líquidos, foram 35.483 pagamentos superiores a esse patamar. Para dimensionar: um brasileiro que recebe um salário mínimo (R$ 1.518) precisaria trabalhar mais de cinco anos para ganhar o que um magistrado recebe em um único mês.
A situação torna-se ainda mais revoltante ao constatar que 82,2% de todos os recursos da Justiça, cerca de R$ 131,3 bilhões anuais, são consumidos com salários, bônus e contribuições sociais.
O sistema judiciário brasileiro tornou-se uma máquina de produzir milionários com dinheiro público, enquanto a prestação jurisdicional permanece lenta, ineficiente e inacessível para a maioria da população.
O Brasil não apenas lidera mundialmente os gastos com o Judiciário, como faz isso de maneira desproporcional e injustificável. Consumimos 1,6% do PIB com os tribunais de Justiça, muito acima da média internacional, que é de 0,37% do PIB. Para contextualizar melhor: em países desenvolvidos, essa despesa corresponde a cerca de 0,3% do PIB; em economias emergentes, é de 0,5% do PIB.
Além de gastarmos mais, gastamos pior. Enquanto no Brasil o percentual destinado ao pagamento de pessoal ultrapassa 80% dos gastos do Judiciário, nos países europeus essa média é de cerca de 70%. Priorizamos o enriquecimento de uma elite em detrimento da eficiência de um sistema essencial para o funcionamento da democracia.
Na Europa, por exemplo, as diferenças salariais entre juízes e promotores não são tão significativas: os magistrados ganham apenas 30% a mais no início da carreira e 20% a mais no topo. No Brasil, essas diferenças podem atingir patamares astronômicos, criando hierarquias absurdas dentro do próprio serviço público.
Enquanto a população brasileira enfrenta desemprego, inflação e falta de acesso à saúde e à educação de qualidade, nossos “servidores” do Judiciário vivem como verdadeiros nobres do Antigo Regime
Em comparação com outros poderes, a remuneração média de servidores federais de nível superior no Legislativo é de R$ 27,4 mil; no Executivo, de R$ 12,5 mil, segundo estudos citados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Uma hierarquia de privilégios que não encontra paralelo em nenhuma democracia séria do mundo.
É inaceitável que, em um país com alta taxa de desemprego e trabalhadores lutando por migalhas, exista uma categoria que não apenas se autorregulamenta, mas também se autobeneficia de forma desmedida.
O Congresso Nacional e o Governo Federal, que deveriam representar os interesses da população, permanecem omissos diante desse saque ao erário, muitas vezes por conveniência política ou por também serem beneficiários de um sistema injusto e perverso.
A História ensina que sociedades profundamente desiguais, onde uma elite se divorcia completamente da realidade do povo, inevitavelmente enfrentam rupturas. A Revolução Francesa de 1789 não foi um acaso: foi o resultado da exasperação popular diante de privilégios insuportáveis de uma aristocracia que vivia às custas do Terceiro Estado, que na época era a grande maioria da população.
No Brasil de 2025, enquanto famílias inteiras sobrevivem com R$ 600 do Bolsa Família, magistrados desfrutam de auxílios que isoladamente superam esse valor: auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, auxílio-educação e até aposentadorias compulsórias (concedidas inclusive quando cometem irregularidades). Uma sucessão de privilégios que desafia qualquer senso de justiça.
Não se trata de questionar a importância do Poder Judiciário para o Estado de Direito, nem de negar a necessidade de remunerar adequadamente seus membros. Trata-se de denunciar um sistema que perdeu completamente a noção de proporção e responsabilidade social.
Quando juízes ganham cifras astronômicas sem nenhum constrangimento moral e ético, quando o orçamento da Justiça consome recursos que poderiam construir hospitais, escolas e financiar programas sociais, e quando uma categoria se torna intocável enquanto o povo sofre, estamos diante de uma perversão democrática intolerável e, de certa forma, cruel.
O momento exige coragem política para enfrentar essa aristocracia que, a cada dia, aprofunda a sua apropriação dos recursos públicos da nação. É urgente estabelecer tetos salariais reais, eliminar auxílios abusivos, criar mecanismos de transparência total na remuneração e vincular os salários do serviço público à realidade econômica do país.
Caso contrário, continuaremos a assistir à construção de uma França pré-revolucionária nos trópicos, onde uma Versalhes togada prospera enquanto o Brasil real agoniza na pobreza e na desesperança.
A paciência de um povo tem limites. E, quando esses limites são ultrapassados, a História cobra seu preço de quem preferiu o privilégio à justiça social.
Dr. Renato de Sá Teles é professor universitário na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Matemática Aplicada.
Fonte: gazetadopovo