Manifesto político ou caminho pastoral? Esta é a questão que surge quando se analisa o discurso dos Padres da Caminhada, grupo formado por cerca de 500 sacerdotes brasileiros com ideias abertamente alinhadas à esquerda e ao anticapitalismo.
Criticado por se afastar da tradição da Igreja Católica, o autodenominado “coletivo” acaba de publicar um e-book para divulgar sua visão de mundo. O livro, organizado pelos padres Manoel Godoy e Geraldino Proença, deixa explícita a filiação da corrente à Teologia da Libertação — além de uma declarada “aliança profunda com movimentos e partidos populares, pastorais sociais e sindicatos ativos”.
As intenções do grupo, no entanto, ficam mais evidentes na live de lançamento da obra, transmitida no último dia 9 e disponível em diversos canais do YouTube com viés progressista. Conduzida pelo frei Olávio Dotto, com a participação dos padres Godoy, Geraldino e “Edinho” Thomassin, a conversa de quase duas horas de duração foi marcada por críticas ao que chamaram de “extrema-direita” e à “economia que mata, centrada no mercado e no lucro a qualquer preço”.
Bolsonaro “deixou gente morrendo”
A política brasileira é um tema recorrente do bate-papo. O Padre Thomassin lembra que os Padres da Caminhada “bebem na fonte” de outro movimento, o Padres Contra o Fascismo — surgido, segundo ele, em meio ao “golpe” contra a “presidenta Dilma” e supostas ameaças à democracia no país.
“Não adianta não ter lado. O lado que nós estamos é o lado dos pobres”, afirma o sacerdote, transformando a opção preferencial pelos necessitados em argumento de fundo ideológico.
O Padre Geraldino destaca o fortalecimento do coletivo durante o governo de Jair Bolsonaro — que “não comprava vacina” e “deixa gente morrendo por descaso”. Nessa época, ele conta, os integrantes fizeram várias denúncias públicas contra Bolsonaro, e por isso foram perseguidos e chamados de comunistas.
Em outro momento, o Padre Godoy menciona que o coletivo deve ter uma missão profética e denunciar as “perseguições contra o Brasil” e o “avanço da extrema-direita”. Segundo o religioso, há um problema sério na vivência cristã: o divórcio entre fé e política.
Godoy ainda critica o governo de Michel Temer, cuja reforma trabalhista “pulverizou” os sindicatos — grandes parceiros das Comunidades Eclesiais de Base, historicamente em sintonia com os movimentos sociais e a Teologia da Libertação.
Novo papa é “um tanto ambíguo”
O Papa Leão XIV também é assunto da live. Godoy manifesta sua insatisfação com o que considera uma falta de posicionamento do Pontífice — o que, na opinião dele, acaba por servir à “disputa de narrativas”.
“Quando ele trata da família, a direita fala: ‘Tá vendo? Não à comunidade LGBTQ!’. Quando ele celebra uma missa em latim, a direita fala: ‘Tá vendo, esse é nosso papa’. Então, por enquanto, seu ministério é um tanto ambíguo”, diz.
Papa bom, para os Padres da Caminhada, foi Francisco. O grupo demonstra profunda adesão com o pontificado anterior, defendendo sua interpretação do Concílio Vaticano II (assembleia da Igreja Católica, realizada entre 1962 e 1965, que buscou atualizar a doutrina para dialogar com o mundo moderno).
Durante o bate-papo, os sacerdotes lembram da carta que enviaram a Francisco em 2020, “denunciando o pouco número de bispos negros”. A mensagem foi escrita após o assassinato do americano George Floyd e enfatizava o slogan “VIDAS NEGRAS TÊM VALOR!” (grafado assim mesmo, em caixa alta).
O papa respondeu cerca de três meses depois, prometendo encaminhar a questão para o Prefeito da Congregação para os Bispos e agradecendo os brasileiros por começar a missiva com versos do poema “Navio Negreiro” (1868), de Castro Alves.
Encontro “histórico” com Lula
O movimento dos Padres da Caminhada nasceu no final de 2019, durante um evento das Comunidades Eclesiais de Base realizado em Canoas (RS). Desde então, seus principais encontros presenciais são marcados por simbologias que reforçam uma linha ideológica bem definida.
Em 2022, a reunião ocorreu em São Félix do Araguaia (MT), junto ao túmulo de Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020), visto por críticos como um “comunista nato”. No ano seguinte, foi a vez dos integrantes se encontrarem na capital paulista, também no jazigo de outro famoso religioso apoiador da Teologia da Libertação: Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016).
O terceiro encontro, previsto para o próximo mês de novembro, acontece em Recife (PE), no memorial de Dom Hélder Câmara (1909-1999), figura igualmente associada às pautas de esquerda.
Essa aliança com o campo progressista se consolidou em postura político-partidária na campanha presidencial de 2022, quando o coletivo participou de um evento, considerado “histórico”, com Lula, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad. Na ocasião, mais de 200 religiosos católicos de todo o Brasil manifestaram apoio explícito à candidatura do petista.
Contra a proteção da vida
Mas a controvérsia mais significativa envolvendo os Padres da Caminhada não tem relação direta com Lula, o PT ou o MST (os sem-terra também recebem apoio sistemático dos religiosos). A polêmica que mais repercutiu nos círculos católicos deu conta da posição do coletivo contra o Projeto de Lei 1904/2024, conhecido como “PL do Aborto”.
Em junho de 2024, 461 integrantes do coletivo divulgaram um manifesto contra o documento — que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, estabelecendo pena de 6 a 20 anos de reclusão (a mesma prevista para homicídio simples).
Embora afirme “não ser a favor do aborto” a corrente se posicionou frontalmente contra a proposta, alegando que ela “criminaliza mulheres que recorrem à interrupção da gravidez após sofrerem estupro e abuso”. Em seu texto, os padres argumentam que o PL “acarreta a grave consequência de penalizar as mulheres pobres” e “criminalizar uma mulher vítima de estupro e abuso é violentá-la novamente”.
A postura causou indignação entre defensores da vida, que apontaram uma clara inconsistência no argumento. Afinal, o projeto se refere especificamente a bebês com 22 semanas ou mais de gestação — período em que já há viabilidade fetal fora do útero materno.
Para os críticos, ao adotar o discurso de “direitos reprodutivos” e “autonomia da mulher”, os Padres da Caminhada não apenas se alinham à agenda progressista internacional: adotam uma perigosa narrativa abortista contrária aos ensinamentos católicos sobre a santidade da vida humana desde a concepção.
Seguidores de “um líder político assassinado”
Procurado pela reportagem da Gazeta do Povo, o Padre Manoel Godoy, coorganizador do e-book, explicou os propósitos dos Padres da Caminhada — e não recuou das posições problemáticas do coletivo.
Segundo ele, o livro é uma carta de identidade, em que os religiosos buscam influenciar a opinião pública dentro e fora da Igreja, manifestando-se sobre os sinais dos tempos.
Questionado sobre as acusações de transformar o trabalho pastoral em militância política, o padre foi enfático: “Não há atuação eclesial neutra. Ou você toma a defesa clara dos deserdados da História ou você se posiciona do lado de quem os oprime e os descarta”.
Para Godoy, a “emergência da extrema-direita católica” facilitou a defesa do grupo, pois “eles não têm nenhum escrúpulo de se posicionar do lado de quem defende o armamento, de quem explora, de quem não respeita qualquer item da pauta dos direitos fundamentais da pessoa humana”.
O padre repete uma frase de Frei Betto, um dos principais teólogos da Libertação. “Que eu saiba, Jesus não morreu de hepatite na cama nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém”, diz. “Somos seguidores de um líder político assassinado por seus posicionamentos inequívocos em favor dos pobres”, acrescenta
Igreja irrelevante
O padre também faz questão de defender a Teologia da Libertação, citando o próprio Papa João Paulo II para legitimá-la. “Como afirmou um dos papas que mais a combateu: a teologia da libertação é ‘oportuna, útil e necessária’.” De acordo com ele, embora a Igreja tenha apontado “excessos ideológicos”, não condenou “a teologia em si”.
Godoy critica duramente o que chama de “retorno às sacristias” da Igreja pós-Concílio Vaticano II, alegando que houve “uma volta aos seus temas internos, gerando uma Igreja muito autorreferenciada”. Para o sacerdote, isso provocou “uma forte irrelevância da Igreja, onde já não há tanto interesse em saber o que ela pensa”.
Sobre a manifestação do coletivo contra o PL Aborto, Godoy diz que o tema “é um campo minado” e acusa a proposta de “não levar em conta os inúmeros condicionantes que envolvem os processos de aborto”. “Os Padres da Caminhada não defendem o aborto quando se manifestam contra o projeto, pois defendem a vida, junto com o direito das vítimas de estupro”, afirma.
Fonte: gazetadopovo