Em 6 e 7 de agosto, a seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil realizou um congresso intitulado “STF: defesa da democracia e o necessário respeito ao devido processo legal”. O próprio título já deixava a entender que o devido processo legal talvez não estivesse sendo plenamente respeitado pelo Supremo quando a corte afirmava estar agindo em defesa da democracia. Ainda que os palestrantes tenham manifestado opiniões divergentes a esse respeito, o simples fato de esse assunto estar sendo discutido já representava uma quebra na “espiral de silêncio” em que a comunidade jurídica foi mantida por longos anos desde a instauração do inquérito das fake news, em 2019. Uma semana depois, no dia 15, a OAB-PR publicou a “Carta do Paraná em defesa da democracia e do devido processo legal”, cujo conteúdo nada tem de ambíguo, e que pode vir a se tornar um marco no processo de tomada de consciência da sociedade civil organizada em relação aos abusos cometidos pelo STF.
Mesmo sem usar o termo “abuso”, a Carta do Paraná é bastante firme na lista de conclusões que consta do documento, e boa parte dele se dedica ao que a OAB-PR chama de “fragilidades no devido processo legal nas chamadas ‘Ações do 8 de janeiro’”. Entre os problemas identificados estão a “utilização equivocada e o alargamento do instituto da conexão” para colocar tudo sob a competência do Supremo; as alterações casuístas da jurisprudência sobre prerrogativa de foro; o cerceamento do direito de defesa, como “restrições ao acesso aos autos, prazos exíguos para a defesa, dificuldades de contato com réus presos e imposição de medidas cautelares que limitam a comunicação entre advogados e investigados”, além da “substituição da sustentação oral por sua simples gravação e juntada aos autos”.
A Carta do Paraná trata a atuação recente do Supremo como o “tema de maior preocupação hoje em nosso país”, e de fato é preciso “coragem para apontar erros” e “firmeza para exigir correção”, como fez a OAB-PR
Também não passou despercebida a “aplicação conjunta dos crimes previstos nos arts. 359-L e 359-M do Código Penal (abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado)”, que “tem resultado em penas excessivas, especialmente para réus de baixa participação nos fatos” e “cumulação indevida de penas, ampliando desproporcionalmente a resposta penal e comprometendo os princípios da razoabilidade e da individualização da pena”. Esse fator, em específico, tem estado presente em alguns dos votos vencidos de ministros nos julgamentos de manifestantes do 8 de janeiro, para quem não é possível condenar alguém simultaneamente pelos dois crimes.
Até mesmo a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid foi mencionada no texto (embora sem citar o nome do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro) e teve sua legalidade colocada em dúvida, devido a “dúvidas sobre a ausência de espontaneidade, a existência de múltiplas versões prestadas pelo colaborador e o contexto de prisão preventiva em que se deu a colaboração”. A poucas semanas do julgamento de Bolsonaro e outros réus por tentativa de golpe de Estado, este alerta da OAB-PR ganha especial relevância e merece ser amplificado, inclusive pelo Conselho Federal da entidade, já que a acusação está construída quase que exclusivamente sobre essa delação.
Também a liberdade de expressão ganhou destaque na Carta do Paraná, com a OAB-PR afirmando que “eventuais críticas não configuram agressões ou ataques ao tribunal, mas sim contribuições legítimas para o aprimoramento de sua atividade jurisdicional e, em última instância, para a defesa da democracia e da Constituição. A crítica responsável é um dever democrático”. Uma verdade simples e poderosa, mas que o próprio Supremo se encarregou de enterrar quando começou a perseguir todos, famosos e anônimos, que criticavam o STF e outros tribunais superiores, independentemente de a crítica ser sensata ou insensata, razoável ou descabida, elegante ou acintosa. Esta perseguição resultou no estabelecimento de um sistema de censura e vigilância no qual uma simples publicação criticando o STF podia ser a diferença entre a liberdade e a cadeia para os manifestantes do 8 de janeiro, como revelou a segunda fase da Vaza Toga.
Mesmo quem gostaria de ver termos mais incisivos na crítica à forma como o STF trocou a democracia por uma autocracia juristocrática há de reconhecer mérito na Carta do Paraná. Ela trata a atuação recente do Supremo como o “tema de maior preocupação hoje em nosso país”, e de fato é preciso “coragem para apontar erros” e “firmeza para exigir correção”, como fez a OAB-PR. É preciso ter em mente que a comunidade jurídica é uma das mais suscetíveis a represálias: críticas ao Supremo podem render uma inclusão em um inquérito abusivo ou prejuízos à carreira. É neste contexto que se deve analisar a manifestação dos advogados paranaenses. Se em 1978 a Declaração de Curitiba, resultante da VII Conferência Nacional da Advocacia, foi um marco na luta pela redemocratização, a Carta do Paraná pode ganhar o mesmo status, nos anos vindouros, como um dos pontapés iniciais de uma nova retomada da democracia no Brasil – mas para isso será preciso que as palavras da OAB-PR ressoem com força, por todo o país.
Fonte: gazetadopovo