Música consiste em organizar sons e silêncios no tempo. Mas o que torna tão prazeroso produzir e ouvir sons organizados? Por que todas as culturas já registradas pelos antropólogos, sem exceção, têm canções?
Há dois caminhos para responder a essas perguntas. O primeiro é partir da premissa de que a música ou alguns de seus componentes foram algo importante para a sobrevivência e a reprodução dos nossos antepassados, ao longo de centenas de milhares de anos de evolução humana.
Se os indivíduos mais hábeis nos vocais, nos tambores ou nas flautas de osso conseguissem, por qualquer motivo, viver mais tempo e ter mais bebês, então eles acabariam transmitindo aos seus descendentes essa facilidade intuitiva em lidar com ritmos e frequências – é o mecanismo da seleção natural darwiniana em ação.
Há boas hipóteses que vão por esse caminho. Por exemplo: andar na mata em grupos para caçar e coletar é algo ruidoso. Além dos galhos e folhas secas que se quebram o tempo todo sob nossos pés, a própria respiração de humanos ofegantes camufla sons importantes: um animal peçonhento se aproximando sorrateiro, um córrego com água potável etc.
Um jeito de contornar isso é andar e respirar em sincronia com seus companheiros – o que exige ritmo. Assim, sempre haverá instantes de silêncio entre as passadas. Essa é uma hipótese do pesquisador sueco Matz Larsson (1). Mesmo uma caminhada solitária, porém, é mais eficaz do ponto de vista energético com velocidade constante, o que é razão de sobra para nosso sistema nervoso vir de fábrica com um metrônomo.
Outra aplicação objetiva da música na rotina pré-histórica provavelmente foi acalmar bebês e fazê-los dormir. Um estudo de 2020 pôs 144 crianças americanas com no máximo 1 ano de idade para ouvir canções de ninar de oito culturas diferentes – algumas bastante distantes do Ocidente.
Todas as gravações, porém, tiveram o mesmo efeito calmante sobre as cobaias. Esse resultado sugere que há uma reação biológica inata a performances com certas características, como voz baixa, melodias sem saltos radicais ou compassos ternários (o balanço característico da valsa) (2).
Noções básicas de métrica e rima também ajudam com outra tarefa: memorização. Assim como a imensa “Faroeste Caboclo”, os 15,6 mil versos da Ilíada eram originalmente decorados e cantados – até porque a maior parte da população da Grécia Antiga era analfabeta.
Tradições assim permanecem mundo afora. Na década de 1930, o antropólogo Milman Parry, de Harvard, viajou ao atual território da Bósnia para conhecer bardos chamados guslari. Eles eram especialistas em entoar poemas épicos longos aprendidos no boca a boca – e lançavam mão, intuitivamente, dos mesmos truquezinhos poéticos que os acadêmicos estudam em Homero (3).
Regularidade, em suma, é algo que facilita a vida do nosso cérebro. Um poema em que os versos têm métrica e rimas fixas e com estrofes de tamanhos previsíveis é altamente organizado (os físicos diriam que ele tem baixa entropia, rs).
Já um poema modernista é impactante justamente porque a irregularidade é um dado a mais, que força o leitor a se perguntar: qual foi a intenção do autor ao talhar um verso tão assim e outro tão assado? Compositores de jazz fusion e rock progressivo fazem algo parecido quando mudam as fórmulas de compasso e acentuações durante as músicas.
Em suma: não faltaram circunstâncias, na história humana, em que algum tipo de habilidade musical, explícita ou implícita, veio a calhar. Mas não podemos descartar outra possibilidade: que a capacidade de apreciar e produzir música seja “só” um efeito colateral da arquitetura dos ouvidos e do sistema nervoso.
Por exemplo: certas combinações de duas notas – que os músicos chamam de intervalos – soam mais agradáveis, enquanto outras são descritas como tensas ou instáveis. Essas sensações têm a ver com o resultado da divisão entre as frequências do par de notas que forma o intervalo.
Um som de 440 Hz e um de 880 Hz dão uma fração de ½, ou 0,5, que é graciosa por ser simples. De fato, na tradição ocidental, frequências que são metade ou o dobro de outras soam tão bem juntas que são consideradas versões – mais agudas ou mais graves –, da mesma nota (neste caso, um Lá).
Por outro lado, a divisão da nota Lá sustenido em 466,16 Hz pela nota Lá em 440 Hz dá um número quebrado: 16/15, ou 1,0666… No tipo de afinação usada nos instrumentos musicais atuais, o resultado é mais cabuloso ainda: equivale a 1,0595. Não por coincidência, esse intervalo, chamado de segunda menor, soa áspero quando tocado isoladamente.
Uma onda sonora se propaga pelo ar na forma de uma alternância rápida entre regiões de alta e baixa pressão: uma vibração. A frequência da onda corresponde ao número de picos e vales de pressão que ocorrem por segundo.
Em intervalos consoantes, de frações simples, os picos e vales das duas notas se alinham com frequência. Já em intervalos dissonantes, os picos e vales passam a maior parte do tempo desalinhados, o que – em linhas muito gerais – bagunça o disparo de sinais elétricos pelos neurônios conectados à cóclea e gera a sensação de aspereza (4).
É claro que há um bocado de variação cultural por trás dessas percepções. Existem tradições musicais mais ou menos abertas a combinações de sons ousadas. Mas evidências apontam que crianças de quaisquer grupos étnicos reagem de maneira parecida a sons consonantes e dissonantes – o que sugere uma base biológica universal para o fenômeno (5).
Por isso, o psicólogo Steven Pinker escreveu que a música é como um… cheesecake. Sobremesas não têm valor de sobrevivência óbvio – de fato, a maioria delas contém tanto açúcar e gordura que, em quantidades insensatas, têm o efeito oposto.
Mas elas são gostosas porque exploram fragilidades óbvias: nossos antepassados caçadores-coletores sofriam com a escassez de comida, e os fãs de carboidratos e lipídios eram os que estocavam pneuzinhos para momentos de necessidade (6).
Ou seja: independentemente do papel das necessidades práticas de sobrevivência, a música é fruto do esforço cultural de gerações de humanos que aprenderam a manipular o software de percepção de sons do nosso cérebro para simular tensão, alívio, alegria e dor.
Do mesmo jeito que a culinária transformou a comida em uma experiência prazerosa também pelo sabor, e não só pela saciedade, a música é um método para fazer cosquinhas anabolizadas nos neurônios – cosquinhas em um grau que a natureza, sozinha, não faz.
Bibliografia: (1) artigo “Self-generated sounds of locomotion and ventilation and the evolution of human rhythmic abilities”, de Matz Larsson; (2) artigo “Infants relax in response to unfamiliar foreign lullabies”, de Constance M. Bainbridge e outros; (3) artigo “’Reading’ Homer through oral tradition”, de John Miles Foley; (4) artigo “Spike train statistics for consonant and dissonant musical accords in a simple auditory sensory model”, por Yuriy V. Ushakov e outros; (5) texto “Is the perception of consonance and dissonance universal?” por Imre Lahdelma da Universidade Durham; (6) livro Como a mente funciona, de Steven Pinker.
Fonte: abril