Sophia @princesinhamt
PolĂ­tica

A Fazenda dos Animais: denĂșncia atemporal do totalitarismo

2025 word2
Grupo do Whatsapp CuiabĂĄ

Um dos maiores desafios de um resenhista, sem dĂșvida, Ă© falar sobre aqueles livros dos quais muito jĂĄ se tratou e encontrar neles alguma crĂ­tica original e digna de ser feita. Nem toda resenha crĂ­tica, contudo, necessariamente precisa ser estupendamente original, deve ser antes uma espĂ©cie de recĂĄlculo de rota, pois, ainda que as conclusĂ”es desse novo caminho sejam as mesmas do caminho anterior, a nova via recalculada pode trazer novas perspectivas e gozos.

Publicada originalmente em 17 de agosto de 1945, no final da Segunda Guerra, — mais conhecida no Brasil por Revolução dos Bichos —, de George Orwell, emergiu no cenĂĄrio literĂĄrio como uma sĂĄtira polĂ­tica que uniu a fĂĄbula e um conteĂșdo incendiĂĄrio, desafiando os poderes ideolĂłgicos de sua Ă©poca e a mĂ­dia amplamente endossadora da UniĂŁo das RepĂșblicas Socialistas SoviĂ©ticas (URSS) no mundo ocidental naqueles dias.

Ou seja, num momento histórico em que a Segunda Guerra Mundial mal havia terminado, e a URSS gozava de prestígio como aliada na derrota do nazismo, Orwell ousou fazer o que poucos faziam: criticar abertamente o stalinismo e todos os que censuravam, aplaudiam ou até defendiam o totalitarismo comunista da URSS.

Sob o disfarce de uma parĂĄbola agrĂĄria, a obra narra a rebeliĂŁo de animais de uma fazenda contra seus opressores humanos, apenas para, em seguida, instaurar uma tirania ainda mais brutal sob o comando dos porcos. O lema da obra Ă© conhecido atĂ© mesmo por aqueles que jamais leram o livro: “Todos os animais sĂŁo iguais, mas alguns sĂŁo mais iguais que os outros”. A frase, sĂ­ntese irĂŽnica do autoritarismo que cresce sob a bandeira da igualdade, resume o nĂșcleo crĂ­tico do romance: a traição dos ideais revolucionĂĄrios e a corrosĂŁo do poder pelo poder.

TĂŁo profunda e basilar Ă© a fĂĄbula de Orwell, que muitos se esqueceram do prefĂĄcio assustadoramente atual ao Ocidente, e em especial, ao Brasil. Denominado e publicado como ensaio para o The Times Literary Supplement, postumamente, em 15 de setembro de 1972, o texto havia sido escrito em 1944 para ser o prefĂĄcio de A Fazenda dos Animais, porĂ©m, foi suprimido pelos editores, pois era altamente crĂ­tico Ă  URSS. No texto em vĂĄrio momentos ele foi profĂ©tico, como quando afirmou que a censura no Ocidente de seus dias “era na maioria voluntĂĄria”. Sobre as desculpas para a censura e a ditadura, na parte final do ensaio, ele parece falar para o Brasil de 2025:

AlĂ©m da conhecida alegação marxista de que a “liberdade burguesa” Ă© uma ilusĂŁo, hĂĄ agora uma tendĂȘncia generalizada de argumentar que sĂł Ă© possĂ­vel defender a democracia por meio de mĂ©todos totalitĂĄrios. Se alguĂ©m ama a democracia, diz o argumento, deve esmagar seus inimigos por qualquer meio que seja. E quem sĂŁo seus inimigos? Sempre parece que eles nĂŁo sĂŁo apenas aqueles que a atacam aberta e conscientemente, mas tambĂ©m aqueles que “objetivamente” a colocam em perigo ao disseminar doutrinas equivocadas. Em outras palavras, defender a democracia envolve destruir toda a independĂȘncia de pensamento. (Tradução minha)

A Fazenda dos Animais vem sendo analisada apenas pelas vistas de um ataque literĂĄrio Ă  URSS, mas ela Ă© bem mais. É um raio-x da estrutura argumentativa de toda e qualquer ditadura. E se hoje ela ainda faz sentido, aliĂĄs, se hoje, por vezes, parece atĂ© fazer mais sentido do que antes, Ă© porque as estruturas que o texto revela sĂŁo mais que denĂșncias temporais, mas antes, afirmaçÔes profundamente filosĂłficas sobre as entranhas do totalitarismo em suas mais diversificadas facetas.

Orwell enfrentou grande resistĂȘncia para publicar sua obra. VĂĄrias editoras britĂąnicas recusaram o manuscrito por temor de represĂĄlias polĂ­ticas — temia-se que criticar a URSS naquele momento fosse uma espĂ©cie de heresia geopolĂ­tica, jĂĄ que o Reino Unido havia se aliado a Stalin para enfrentar os nazistas. Foi apenas pela intervenção do poeta conservador T.S. Eliot, entĂŁo editor na Faber & Faber, e do pequeno selo Secker & Warburg, que o texto finalmente chegou ao pĂșblico.

A estrutura fabular do romance Ă© deliberadamente simples. Orwell recorre Ă  linguagem direta e ao simbolismo transparente — os porcos NapoleĂŁo e Bola-de-Neve, por exemplo, representam figuras como Stalin e TrĂłtski. Mas, sob essa superfĂ­cie infantil, corre uma correnteza amarga. A progressiva deformação dos ideais de liberdade e justiça espelha o curso histĂłrico da Revolução Russa, de 1917 atĂ© os expurgos sangrentos dos anos 1930. Justamente por essa clareza que muitos crĂ­ticos denotam o sucesso posterior do texto, outros ainda falam da estrutura quase infantil da alegoria. A mim parece claro que se trata de uma fusĂŁo de linguagem simples, enredo envolvente e mensagem moral cara; atĂ© um adolescente distraĂ­do do Brasil entende, por exemplo, o que quer dizer a imagem final da obra, onde os porcos estĂŁo sentados Ă  mesa com os humanos que juravam odiar.

Isto Ă©, o ensaĂ­smo do romance se expressa menos na forma e mais na sua função: A Fazenda dos Animais nĂŁo Ă© apenas uma histĂłria moral — ainda que o seja de forma evidente —, mas um comentĂĄrio polĂ­tico e incisivo sobre a maleabilidade da verdade sob regimes totalitĂĄrios. A reescrita das regras no celeiro, a manipulação da memĂłria coletiva dos animais e a vigilĂąncia constante sĂŁo mecanismos familiares aos leitores do sĂ©culo XX — e assustadoramente reconhecĂ­veis ainda hoje.

George-orwell-BBC
O Escritor George Orwell | Foto: Wikimedia Commons

Quase 80 anos apĂłs sua publicação, o texto permanece atual, como um espelho desconfortĂĄvel nĂŁo apenas da polĂ­tica soviĂ©tica, mas de toda forma de poder que se legitima pela mentira, pela opressĂŁo da dissidĂȘncia e pelo judicialismo da polĂ­tica popular. A precisĂŁo com que Orwell desmascara a lĂłgica do autoritarismo torna a leitura de A Fazenda dos Animais quase pedagĂłgica para os adultos e jovens e um conto envolvente para as crianças: Ă© um manual moral em forma de fĂĄbula, uma anatomia da opressĂŁo com linguagem acessĂ­vel e contundĂȘncia filosĂłfica. Mais que uma crĂ­tica ao stalinismo, Orwell escreveu um tratado sobre os ciclos viciosos do poder — e sobre como revoluçÔes podem devorar seus prĂłprios filhos sob a promessa de um amanhĂŁ igualitĂĄrio. Ao final, A Fazenda dos Animais permanece como uma obra incĂŽmoda porque revela, em termos claros demais para serem ignorados, que a liberdade exige vigilĂąncia constante, coragem heroica e homens e mulheres com brio para praticĂĄ-la, reafirmĂĄ-la e defendĂȘ-la — e que, Ă s vezes, os porcos jĂĄ estĂŁo entre nĂłs, usando de palavras bonitinhas como “igualdade” e “democracia” para domar a Fazenda Brasilis.

Fonte: revistaoeste

Sobre o autor

Avatar de Redação

Redação

Estamos empenhados em estabelecer uma comunidade ativa e solidåria que possa impulsionar mudanças positivas na sociedade.