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Ciência & Saúde

Ilum: a universidade que forma a elite da ciência no Brasil

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Sete dias. Esse foi o tempo que Gabriela Frajtag teve para mudar completamente de vida. Ela lembra que tudo começou em 2023, durante um date em um boliche no Rio de Janeiro, sua cidade natal. Mais ou menos no meio do encontro, alguns strikes já na conta, chegou a cartinha de Hogwarts. Ou melhor: o e-mail. De toda a extensão do recado, apenas algumas palavras ficaram registradas em sua memória: “bem-vinda à Ilum”. Gabriela tinha só uma semana para aceitar a vaga e se mudar para a cidade de Campinas, no interior de São Paulo – onde fica o curso de graduação mais cabeçudo da América Latina.

Enquanto isso, Mayllon Emmanoel Silva, um alagoano que recebeu o mesmo e-mail, se concentrava em montar um PowerPoint ao melhor estilo Deltan Dallagnol para convencer seus pais de que a mudança de cidade, com seus recém-completados 18 anos, era uma decisão razoável. Ele também queria frequentar a Ilum, que foi inaugurada em 2021 e formou sua primeira turma agora, no final de 2024.

A Ilum, que é parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), é basicamente uma versão real da Mansão X do Prof. Xavier – personagem da Marvel que dirige a Escola para Jovens Superdotados, onde estudaram Ciclope, Homem de Gelo e a Garota Marvel. O Xavier da vida real foi o físico Rogério Cerqueira Leite, que idealizou a escola e pôde vê-la sair do papel antes de morrer, aos 93 anos, em dezembro de 2024.

A telepatia ainda é um obstáculo a ser superado por esses X-Men: por ora, os alunos se contentam com o único curso que a instituição oferece, o multidisciplinar de Ciência, Tecnologia e Inovação. Com três anos de duração, aulas em período integral e um currículo que abrange ciências naturais e humanas, o objetivo ali é formar uma elite científica precoce, capaz de transitar sem dificuldade entre diferentes áreas do conhecimento.

O bacharelado é 100% gratuito; a Ilum opera sem fins lucrativos. O 0800 não se limita à mensalidade: eles dão moradia, alimentação, laptop para usar nas aulas e transporte até a instituição em si e às demais instalações do CNPEM. Também custeiam cursos de inglês, consultas com psicólogo e até a primeira viagem dos alunos a Campinas.

As instalações ficam no bairro afastado da Fazenda Santa Cândida, em um galpão que, por fora, mantém todas as características típicas de… um galpão. Uma certa ausência de arquitetura leva o visitante a imaginar apenas algumas caixas e inventários lá dentro.

Ledo engano. O que se vê são salas de aula com paredes de vidro de ponta a ponta e mesas agrupadas, o que permite que qualquer pessoa observe os estudantes em aula o tempo todo – e que os próprios estudantes se comuniquem facilmente entre si. A ideia é propiciar a interação, não o silêncio.

Também há dois laboratórios: um seco, destinado à caracterização de materiais, e um úmido, para trabalhos com reagentes e soluções. Os nomes dos equipamentos encontrados nessas salas ajudam a pintar a cena, ainda que o ser humano médio precise de um glossário para entender o inventário a seguir: uma centrífuga refrigerada, uma cabine de segurança biológica, um nanoespectrofotômetro e alguns microscópios de última geração (de força atômica, de tunelamento de elétrons, microscópios ópticos tradicionais, microscópios com luz ultravioleta etc.).

Imagem de dois estudantes, em um laboratório, utilizando uma computador.
Nanoespectrofotômetro e microscópio de tunelamento quântico: lidar com equipamentos de nomes simpáticos (rs) é parte da rotina de aulas práticas. (Ilum Escola de Ciência/Divulgação)

Nada de vestibular

O processo seletivo, único no Brasil, tem poucas semelhanças com o ingresso às universidades comuns, públicas ou privadas. Ele é dividido em três partes: a primeira é uma demonstração de interesse, na qual o candidato escreve uma carta explicando por que tem um perfil condizente com o da Ilum. O segundo passo é fazer o Enem e, claro, pontuar bem. Medalhas em olimpíadas de matemática, física e química também contam pontos.

A última etapa consiste em entrevistas individuais com os 250 candidatos mais bem avaliados nas duas fases anteriors. As conversas são gravadas e analisadas por um comitê de seleção, que dá o veredicto final. Trata-se de um processo muito mais certeiro e humano do que um vestibular tradicional, mas também custoso e difícil de implantar em larga escala – é de se imaginar como algo assim funcionaria na Universidade de São Paulo (USP), que tem 60 mil alunos só na graduação.

Os alunos passam os três anos do bacharelado já com um pé na pesquisa. E o diploma já os qualifica para ingressarem diretamente em um doutorado. Tudo para que esses brasileiros comecem a trabalhar o mais cedo possível, ainda na faixa etária ideal para fazer contribuições acadêmicas relevantes (cientistas são um pouco como atletas: a maior parte dos vencedores de Prêmios Nobel fez as descobertas que mudaram suas carreiras entre os 25 e os 35 anos).

Linguagem Matemática, Ciência de Dados, Ciências da Matéria, Ciências da Vida e Humanidades são os cinco pilares de conhecimento da grade curricular da Ilum, que consiste em 14 disciplinas por semestre. Um dia normal por lá tem aulas sobre aprendizado de máquina, fundamentos da mecânica quântica, estrutura e função das proteínas, equações diferenciais, história da ciência etc. É um sopão anabolizado de todas as áreas, que mostra onde estão as fronteiras e os limites da nossa compreensão do mundo – e como é possível expandi-los.

“São matérias bem diversificadas, mas com o tempo você percebe a conexão entre elas e como podem conversar ou ser usadas como ferramenta”, explica a aluna Raquel Vianna, vinda do Paraná. “A natureza não se divide conforme disciplinas – compreendê-la é resultado de uma combinação de todas elas.”

Imagem de uma sala de aula.
O curso dura apenas três anos, com uma grade horária intensa. E os formandos saem prontos para começar o doutorado. (Ilum Escola de Ciência/Divulgação)

A integração com o CNPEM não é apenas burocrática. Os alunos passam uma parte significativa de sua rotina universitária por lá – um dia da semana é dedicado exclusivamente a atividades no Centro. A ideia é que eles já saiam do curso prontos para mexer nos “brinquedões” de lá.

Um deles é o Sirius, um acelerador de elétrons de quarta geração – o tipo mais avançado que há no mundo –, que é capaz de gerar visualizações tridimensionais de altíssima definição de coisas tão variadas quanto bactérias e poros em rochas petrolíferas. Outro é o futuro Órion, um laboratório de máxima contenção biológica que será conectado ao Sirius (o que permitirá, por exemplo, observar patógenos perigosos em escala molecular). A conclusão da obra está prevista para 2026.

O CNPEM, fundado em 1997, não é um centro de pesquisa comum. Trata-se de uma Organização Social (OS) vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Isso significa que, embora seja uma entidade privada, ela não tem fins lucrativos e se sustenta com recursos públicos. O resultado é que eles têm toda a flexibilidade administrativa de uma empresa comum – como a contratação CLT em vez de concursos públicos –, mas podem custear iniciativas como a Ilum, o Sirius ou o Órion sem a obrigação de gerar dinheiro com elas. Essa combinação pôs o órgão na vanguarda da pesquisa nacional.

A vida dos iluminados

Piadinhas com X-Men à parte, falar em genialidade inata é um erro. Ainda que os alunos selecionados para a Ilum tenham alguma facilidade natural com a vida acadêmica, o traço de personalidade mais importante para conseguir uma vaga por lá é a vontade de aprender sobre tudo – e a força para aguentar o tranco de uma grade curricular tão variada. “A receita para ser cientista é esforço, resiliência, criatividade, muita, muita curiosidade e uma boa pitada de sorte e oportunidades”, diz Gabriela Frajtag (a do boliche).

Prova disso é que, ainda que a Ilum pesque jovens promissores diretamente do ensino médio, não existe uma idade limite para se inscrever no processo seletivo. Por exemplo: Ana Luiza Loss, uma aluna que veio de Rondônia, contou para a Super que a Ilum não foi sua primeira faculdade. Ela passou alguns anos experimentando cursos: fez primeiro mecânica de aviões, e depois tentou física biomolecular na USP de São Carlos.

 

A Ilum abre apenas 40 vagas por ano. Para a turma de 2024, a disputa foi entre 3,9 mil inscritos, o que dá 97,3 candidatos por vaga – para fins de comparação, são 96,5 para Medicina na USP. Não existe previsão de crescimento. Adalberto Fazzio, o diretor, explica que o número modesto de alunos permite atendê-los com a atenção necessária. Até o nome de alguns pais os docentes sabem.

Imagem de um laboratório e sua bancada com microscópios.
As avaliações são humanizadas e não giram em torno de provas. E os alunos não são crânios sem vida social: ninguém se priva de bater uma bolinha ou tomar um goró. (Ilum Escola de Ciência/Divulgação)

O resultado dessa personalização toda é que quase ninguém desiste do curso. De acordo com Fazzio, “começamos com uma turma de 40 alunos, dos quais 35 estão se formando neste ano e apenas dois estão atrasados”. A taxa de evasão é de apenas 10%, contra os 54% de um curso como matemática aplicada e computacional na USP (o dado é de 2023). Outro ponto fora da curva é a variedade de pessoas e origens: a turma de Ana Luiza, por exemplo, tem alunos de 24 estados do País. 50% das vagas vão obrigatoriamente para alunos de escolas públicas.

Essa fidelidade toda também é crédito de uma abordagem mais humanizada que as graduações comuns (especialmente as de exatas). Apesar das 40 horas de aula semanais – e da fatia razoável do tempo livre que os estudos inevitavelmente vão ocupar –, há poucas provas nos moldes clássicos, e as notas são atribuídas com base em participação em aula, relatórios de experimentos nos laboratórios, resultados de projetos em grupo e outros critérios que têm muito mais a ver com a rotina real de um cientista.

Ninguém se priva de bater uma bolinha ou tomar um goró, diga-se. O aluno Isaque Junior Silva explica que as agremiações estudantis da Ilum funcionam como as de qualquer outra faculdade. O Centro Atlético Acadêmico: Pesquisa e Ensino de Ciências (CAAPEC) é responsável por organizar as integrações entre as turmas – seja na forma de calouradas, saraus ou jogos de futebol e vôlei.

Os trabalhos de conclusão de curso, que rolam em grupos de quatro estudantes, são projetos de pesquisa científica supervisionados por acadêmicos mais seniores, e os alunos devem sempre se preocupar com os desdobramentos de suas descobertas para o mundo além das paredes da Ilum. Responder a perguntas como ‘“por que este tema é importante para a sociedade?” e “por que desenvolver este projeto no Brasil?” é essencial na apresentação final.

Gabriela explica que “a partir do 3° semestre temos uma matéria chamada Iniciação à Pesquisa, em que trabalhamos por um semestre desenvolvendo algum projeto em um dos Laboratórios Nacionais localizados no complexo do CNPEM”. Há o LNBio, de biociências, o LNBr, de biorrenováveis, o LNNano, de nanotecnologia e, é claro, o próprio Sirius.

Para os alunos que ainda não se sentem preparados para cair direto no doutorado ou buscam caminhos profissionais fora da pesquisa, a Ilum oferece a possibilidade de se matricular, ao final do curso, nos anos finais de graduação de cursos de exatas na Universidade Federal do ABC – que, embora opere em moldes mais tradicionais que a Ilum, ainda tem uma abordagem interdisciplinar que a difere das demais federais.

Imagem de dois estudantes, em um laboratório, utilizando uma seringa.
São 97,3 candidatos por vaga, e a escola aceita apenas 40 novos alunos por ano. O processo seletivo tem até entrevista. (Ilum Escola de Ciência/Divulgação)

Cursos desse tipo são uma tendência no Brasil. Algo semelhante já está acontecendo no Rio de Janeiro por meio do IMPA Tech, uma graduação recém-inaugurada pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada com o mesmo perfil da Ilum. Para não falar no precursor de ambos: o lendário curso de Ciências Moleculares da USP, que só é acessível por meio de um processo seletivo interno, entre alunos já matriculados.

Iniciativas assim estão alinhadas com o que especialistas e instituições renomadas pregam como ideal na formação de pesquisadores – e prometem nos dar uma geração de brasileiros com um quê de polímatas, capazes de ir além da força bruta das equações e pensar em sintonia com as necessidades do País e do planeta. Diante das mudanças climáticas, do problema crônico do negacionismo científico e de tantos políticos interessados no desmonte da ciência nacional, não dá para negar: eles vêm em boa hora.

Fonte: abril

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