A vitória de Lula acabou de pintar de vermelho o mapa da América Latina, hoje uma região tomada quase que inteiramente por governos de esquerda. A onda que começou em 2018, no México, com a eleição de Andrés Manuel López Obrador, expoente da velha guarda esquerdista, foi descendo, inexorável, pelos países das Américas Central e do Sul, projetando o jovem tatuado Gabriel Boric, no Chile, e alavancando Gustavo Petro, o primeiro presidente desse espectro ideológico da Colômbia. Agora se espraia sobre o Brasil, a maior economia da região, e dá novo fôlego a um conjunto de líderes interessados em articular uma frente unida para se livrar da areia movediça de baques econômicos e cobrança popular que ameaça sugá-los. Não por acaso, mal confirmada a vantagem de Lula, o argentino Alberto Fernández, engolfado em uma crise abissal, desembarcou em São Paulo para dar parabéns ao novo colega.
Em geral mais pragmáticas e modernas do que a esquerda dogmática dos velhos tempos, as lideranças vermelhas alçadas hoje ao poder na América Latina estão cientes de que os votos que receberam são menos ideológicos e muito mais antissistema. Todas as eleições, de 2019 para cá, se deram em um contexto de múltiplas crises — desaceleração da economia, seguida pelo flagelo da pandemia de Covid-19, que acelerou o risco de recessão, e neste ano pela guerra na Ucrânia, com consequente aumento do custo de vida, produção agrícola sob ameaça e desvio das prioridades dos países ricos para outras regiões do planeta. “As crises aprofundaram as desigualdades e a pobreza, aumentando a desconfiança do cidadão e aguçando protestos nas ruas e nas urnas”, explica Daniel Zovatto, diretor regional da Idea Internacional para América Latina e Caribe.
O movimento pendular do eleitorado, que alterna direita e esquerda no poder, também ganhou impulso com a polarização política, que estimula o voto de protesto contra a ordem estabelecida. Uma vez no poder, porém, vários expoentes dessa nova leva de dirigentes latino-americanos estão provando o gosto amargo do voto “do contra”. Boric, no Chile, viu sua popularidade desabar diante das falhas em lidar com questões sociais e tenta apagar o incêndio provocado pela rejeição, em plebiscito, de uma nova Constituição na qual apostava todas as suas fichas. No Peru, Pedro Castillo, político novato saído dos redutos mais pobres e desassistidos do país, enfrenta cinco processos criminais e já passou por dois pedidos de impeachment em um ano de gestão errática e ineficiente. Na Venezuela e na Nicarágua, bem como em Cuba, o antigo farol da esquerda latino-americana ainda imobilizado no passado, governos ditatoriais e repressivos viraram motivo de constrangimento para líderes que tentam não escorregar da corda bamba entre condenar os métodos sem deixar de apoiar os que os praticam.
É nessa América Latina ideologicamente homogênea, mas fracionada e enfraquecida no contexto da geopolítica mundial, que Lula surge como a esperança de, no cenário ideal, ressuscitar o agonizante Mercosul, contribuir — inclusive financeiramente — para tirar vizinhos do buraco e reverter a irrelevância do bloco. Trata-se de uma tarefa e tanto, ainda mais porque o novo presidente terá sua própria penca de problemas a resolver, e a solução deles requer o realinhamento de relações com os donos da bola no jogo dos interesses internacionais.
Felizmente, o cenário tende a melhorar nesse campo. Maior parceira comercial do Brasil, respondendo por 30% das exportações e 20% das importações, a China foi sistematicamente hostilizada no governo de Jair Bolsonaro, com ataques à vacina anti-Covid desenvolvida pelos chineses e troca de acusações nas redes sociais entre o filho-deputado Eduardo Bolsonaro e o então embaixador Yang Wanming. Mesmo assim, o comércio bilateral atingiu o recorde de 164 bilhões de dólares em 2021 e cabe a Lula agora aplainar os buracos dessa via de desenvolvimento essencial para o país.
Da mesma forma, o presidente eleito precisa aparar as arestas das relações com os Estados Unidos. Bolsonaro, afinadíssimo com o trumpismo, foi o último chefe de Estado do G20, o grupo das maiores economias, a parabenizar o democrata Joe Biden quando ele chegou à Casa Branca, o que contribuiu para o Brasil ser colocado no pé da lista de prioridades americanas. Somando-se essas questões à monumental demanda interna de conciliação com quase metade dos eleitores que votou no bolsonarismo, é provável que carregar a América Latina para uma melhor posição no xadrez mundial tenha de entrar na fila dos problemas que se espera Lula seja capaz de resolver no seu terceiro mandato.
Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814
Fonte: Veja