Em meados de 2021, quando o mercado de inovação seguia em polvorosa e investidores estavam dispostos a alocar capital aos montes em startups, o número de unicórnios (empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) proliferou. Apenas naquele ano, foram 10 novas empresas a alcançarem o título, provando que a união entre um modelo de negócio disruptivo e o apetite de investidores de risco poderia fazer do Brasil um celeiro fértil para empresas de tecnologia. Entre elas está a MadeiraMadeira, e-commerce de itens de decoração para casa. Beneficiada pelo bom momento do venture capital e do varejo eletrônico, ela se juntou à lista de startups a alcançarem a casa do bilhão. Longe do frenesi, porém, a MadeiraMadeira também pode creditar seu sucesso a um caro elemento em sua fórmula: a sua origem – e permanência – em Curitiba, um polo inovativo que foge ao tradicional eixo Rio-São Paulo que, atualmente, concentra o maior número de startups no país.
Fundada em 2009 em São José dos Pinhais, polo madeireiro do Paraná, a empresa decidiu se mudar para a capital para driblar a escassez de mão de obra tecnológica, um movimento similar ao de muitas empresas que ali nasceram nos últimos anos. Logo após isso, o interesse de investidores veio naturalmente, conta Marcelo Scandian, cofundador da empresa. “Eles (investidores) entenderam que era possível construir todo o time com a senioridade necessária, que a gente conseguia realmente fazer esse trabalho de construção do time e tecnologia, e não estar no Sudeste não seria uma barreira para isso”, diz.
A receita para o crescimento da startup também esteve, em boa medida, no bom aproveitamento da estrutura na qual o próprio ecossistema de inovação curitibano está constituído: a triangulação entre poder público, iniciativa privada e academia. A MadeiraMadeira participou, por exemplo, do Tecnoparque, programa municipal que oferece a redução da alíquota de ISS (Imposto Sobre Serviços) para empresas de tecnologia lá instaladas e, em troca, exige o investimento do valor economizado em projetos de inovação.
A trajetória da empresa de Scandian justifica, em partes, por que Curitiba se transformou no que é hoje. O município é, atualmente, a segunda melhor capital do Brasil para startups, segundo o Global Startup Ecosystem Index Report. A cidade perde, apenas, para São Paulo. Das 24 startups unicórnio brasileiras, três estão em Curitiba, uma cidade com 430 startups, de acordo com levantamento do Sebrae/PR.
Protagonismo de Curitiba
A presença da capital paranaense no ranking pode não causar espanto se vista de uma perspectiva que desconsidere a proporcionalidade — grandes metrópoles, como São Paulo, naturalmente concentram um número superior de empresas. Contudo, o protagonismo de Curitiba em meio a reconhecimentos globais nos temas de inovação, empreendedorismo e tecnologia tem contribuído não apenas para destacar a cidade, mas também influenciar boa parte das ações do poder público local.
O pontapé para alcançar esse status está na inclinação para a sustentabilidade, o que levou Curitiba a conquistar o título de capital verde do Brasil ainda na década de 1980. Mas, foi somente a partir de 2017, com a consolidação de iniciativas endereçadas pelo poder público e a notoriedade de startups bem-sucedidas na região – vide o caso de MadeiraMadeira – que a cidade também passou a ser conhecida como um polo atrativo para o empreendedorismo tecnológico.
A mais notável delas é talvez a criação do Vale do Pinhão, nome dado ao ecossistema de inovação regional. A proposta do Vale do Pinhão, inspirado nos moldes de outros “Vales” espalhados pelo mundo, era o de concentrar os esforços da chamada quadrupla hélice, formada pela iniciativa pública, privada, academia e sociedade civil.
“O pilar do Vale do Pinhão, assim como no Vale do Silício, é a educação”, diz Dario Paixão, secretário municipal de desenvolvimento econômico, inovação e inteligência artificial e presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento e Inovação, órgão da prefeitura responsável pela gestão das iniciativas do Vale do Pinhão.
Quando você tem proximidade com universidades, você tem talentos que estão ligados à tecnologia e que vão abrir suas empresas ligados ao tema. No ambiente de Curitiba, isso acontece porque nós temos na nossa cidade 55 instituições de ensino, sendo quatro delas universidades que, por definição, obrigatoriamente precisam investir em pesquisa, o que gera patentes e inovação”, diz. “O sucesso desse modelo – e que o mundo todo adota, inclusive Curitiba – é propício para que negócios se tornem globais, afirma Paixão.
Sob a coordenação da Agência Curitiba, o Vale do Pinhão soma projetos que vão da criação de coworkings públicos, ofertados de maneira gratuita para empreendedores testarem ideias nascentes, a espaços empreendedores espalhados pela cidade e que atendem cerca de 400 mil empresas, em grande maioria microempreendedores, em busca de capacitações e orientações. Já nos coworkings, estão abrigadas cerca de 370 startups.
A variedade de projetos e incentivos fiscais (a exemplo do dos concedidos às empresas do Tecnoparque) busca atender a diferentes públicos dentro do universo empreendedor, apoiando empresas em estágio inicial e, também, companhias que precisam dar um passo adiante em temas como regularização, captação de investimentos e inovação aberta.
Exemplos de como Curitiba apoia o empreendedorismo
O tratamento diferenciado às empresas de acordo com a sua fase de maturidade também é o ponto de partida da atuação do Sebrae/PR, divisão estadual da entidade, junto aos empreendedores locais. A instituição é uma das precursoras no trabalho com startups em escala nacional ao desenvolver o programa Sebrae Startups e dar ênfase às pequenas empresas de tecnologia há pelo menos uma década. “Eventualmente, quando vamos a outros estados, ouvimos dos colegas que o Sebrae Paraná tem bons programas, é uma referência, acaba se destacando em relação ao apoio ao empreendedorismo em suas diferentes fases”, diz Artur Amarante, gestor regional de Startups do Sebrae/PR.
No modelo estabelecido pelo programa, as empresas são divididas entre pré-ideação, ideação, operação e escala. A ideia é atender desde ideias de negócio não formatadas a empresas estabelecidas no mercado e com volume de vendas considerável. Em um desses projetos, chamado Garage, a aproximação com universidades permite aos alunos a criação de projetos capazes de solucionar desafios pré-estabelecidos. Apenas em 2024, foram 35 turmas em 10 universidades, totalizando 500 alunos impactados em Curitiba.
A combinação entre a vocação para ao empreendedorismo e o acúmulo de outros títulos concedidos à cidade em diferentes rankings internacionais, como o de cidade mais inteligente e mais igualitária do mundo e também com o melhor meio ambiente do Brasil, acabou dando aos empreendedores locais a chance de alavancarem seus negócios e se conectarem sem a necessidade de buscar por conexões em outras regiões, além de testarem seus produtos para além das limitações municipais.
Redes de fomento
A articulação de diferentes agentes motiva sucessivas revisões no plano de gestão da capital, além de uma governança dividida em quatro pilares, as chamadas “redes”, responsáveis por envolver diferentes agentes do ecossistema em busca de soluções que pavimentam o futuro inovativo da cidade.
“O ecossistema não pode ser apenas um coletivo de atores. É preciso um propósito em comum e um planejamento compartilhado, e é isso que fazemos a partir das redes”, diz Maura Guérios, responsável pela gestão da rede de inovação, um dos quatro pilares do Vale do Pinhão. Além da rede de inovação, o Vale do Pinhão também conta com as redes de talentos (universidades e centros de formação); de capital, formada por investidores pessoa física, bancos e agências de fomento e fundos de venture capital; e a rede de apoio, que concentra as startups e empresas dispostas a colaborar de forma geral.
Maura é, também, head do Ecohub, hub de inovação lançado em 2023 e que reúne as iniciativas de inovação da Universidade Positivo. O objetivo é auxiliar empreendedores de primeira viagem por meio de uma pré-incubadora de ideias e, também, cedendo aos aspirantes a empreendedores o acesso ilimitado aos chamados “espaços makers”, que nada mais são do que os laboratórios de pesquisa da própria universidade para criação e prototipagem.
Para completar o ciclo, o Ecohub também desenvolveu um Centro de Inovação para conectar startups, corporações e pesquisadores acadêmicos que auxiliem nos processos de P&D de empresas nascentes e um parque tecnológico que já abriga, pelo menos, três empresas de tecnologia locais.
A inovação é algo complexo, porque está ligada ao risco de mercado. Não se faz inovação sem arriscar, ainda mais sozinho. Por isso, essa articulação é vital, diz Maura.
Ecossistema engajado
A variedade de ações de apoio aos empreendedorismo de base tecnológica impõe um desafio de comunicação ao próprio ecossistema da cidade, que precisa dar conta de orientar um número crescente de empreendedores sobre a existência dos programas de incentivo e ajudando no encaminhamento para projetos de acordo com a necessidade de cada empreendimento.
“A gente tem diversas universidades, inclusive algumas ranqueadas como as melhores do Brasil. Nós temos, aqui, um grande polo industrial, temos o governo do estado apoiando essas empresas. Nós temos o Sebrae conectando as pontas e prestando apoio para as empresas. E 90% das soluções funcionam de forma 100% gratuita. Nós temos investidores, inclusive fundos de investimento prontos para investir em empresas com grande potencial. Ou seja, hoje, falta apenas um processo mais ativo de comunicação, pois os ativos já temos”, diz Amarante, do Sebrae.
Para Maura, do Ecohub, a solução para isso está na integração mais densa entre os atores do ecossistema, para que uma startup possa “pingar” de elo em elo, na medida em que ganha robustez. Nessa frente, a rede de inovação, sob a batuta do Vale do Pinhão, tem preparado um material educativo com o intuito de orientar cada participante do ecossistema, de coworkings a parques tecnológicos, sobre quais serviços eles podem oferecer aos empreendedores locais e, também, como abordá-los. “Será um grande guia para o ecossistema e o pilar da comunicação do que Curitiba tem a oferecer, pois o que queremos é evitar que o nosso empreendedor saia daqui”.
Ciclo virtuoso
Histórias de sucesso também tendem a ajudar nessa missão. De acordo com Scandian, da MadeiraMadeira, a startup, como um dos raros exemplos de empresa local a alcançar o valuation bilionário de mercado, tem a responsabilidade de devolver isso em troca de conhecimento a outros empreendedores, em um ciclo virtuoso de fomento a novas ideias promissoras da região. “Para nós, levantar a bandeira de que Curitiba é um local propício ao empreendedorismo vem mais um sentido de giveback direto aos empreendedores que tem essa fome de empreender, de participar desse ecossistema de alguma forma”.
A lógica de giveback também motiva a criação de outras iniciativas empreendedoras isoladas na cidade. Em outubro, Curitiba celebrou o lançamento da Pinhão Valley Startup Community, uma comunidade formada por startups locais e que vem para conectar empreendedores em um espaço dedicado à troca de ideias. “Temos um ecossistema diverso, mas faltava uma entidade ou um ‘clube’ que reunisse startups de Curitiba com o objetivo único de fazer com que as pessoas ali dentro se ajudem, façam conexões e relacionamento, se conheçam mais a fundo, confraternizem e ajudem uns aos outros a se desenvolver”, afirma Gustavo de Paula, fundador da startup curitibana Chavi e um dos oito empreendedores à frente do projeto. Recentemente, a Chavi obteve um aporte de R$ 1,5 milhões no programa Shark Tank. A startup de fechaduras digitais e controles de acesso também participou, neste ano, do programa Top10 PR do Sebrae/PR.
Pouco menos de um mês após ser lançada, a Pinhão Valley Startup Community já conta com 50 membros. A expectativa é dobrar o alcance nos próximos meses.
Cidade inteligente
Além do relacionamento entre a própria comunidade empreendedora, o estreitamento de laços com o ambiente acadêmico para a criação e testagem de novas tecnologias é o que vai determinar o futuro da inovação na cidade, afirma Paixão. No centro dessas discussões – e dando fôlego para todas essas invenções – está a inteligência artificial. A demanda pela tecnologia tem motivado a criação de uma rede especialmente dedicada ao tema, além de uma secretaria própria que se mobiliza para articular projetos de desenvolvimento e aplicação prática de IA no dia a dia da cidade.
Na pauta, está a incorporação de reconhecimento facial nas vias para fins de segurança pública a índices meteorológicos precisos capazes de antever mudanças climáticas. Juntas, essas melhorias prometem manter a capital paranaense na vanguarda entre as chamadas “cidades inteligentes”, metrópoles capazes de equilibrar o potencial tecnológico e a sustentabilidade.
Imagine o quanto a gente pode melhorar a nossa vida no planeta e na cidade com o desenvolvimento dessas novas tecnologias em todas as áreas. Então, esse é o futuro. Um futuro que busca mais qualidade de vida e diminuir os problemas que a nossa própria sociedade gerou em relação ao planeta, que está em um momento muito crítico, afirma o secretário.
Enquanto isso, algumas perguntas rondam os principais decisores de inovação no município. Há chances de repetir os feitos e conquistar a dobradinha nos títulos de reconhecimento ainda no curto prazo? Somados os investimentos em inteligência artificial, os projetos de fomento ao empreendedorismo serão suficientes para atrair (e manter) talentos locais? Ao que tudo indica, Curitiba continuará sendo um laboratório de inovação a céu aberto e, possivelmente, a primeira a ter essas respostas.
Futuro das cidades
Para além da iniciativa pública, o futuro das cidades também ganha espaço em um dos principais eventos globais sobre cidades inteligentes, o Smart City Expo Curitiba, realizado pelo iCities há cinco anos na capital paranaense. O congresso promove o debate e o desenvolvimento de ideias e soluções para criar cidades mais inteligentes, sustentáveis e inclusivas. Com a edição de 2024, o Smart City de Curitiba se tornou o segundo maior evento do mundo em número de participantes, ficando atrás apenas do Smart City Expo World Congress, realizado anualmente pela Fira Barcelona.
Para a próxima edição, além das discussões sobre como criar um futuro melhor e mais sustentável para as cidades, o evento contará com a primeira do Fórum Econômico Smart Brasil, com a finalidade de fomentar ainda mais toda a cadeia de investimento nas áreas de tecnologia para fortalecer o setor de cidades inteligentes no país.
O fórum vai se concentrar em fomentar investimentos e fortalecer o setor de cidades inteligentes no Brasil com uma abordagem multidisciplinar, incluindo áreas como engenharia, arquitetura, infraestrutura e logística, e contará com a participação de instituições financeiras brasileiras e internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de parcerias com grandes bancos e cooperativas de crédito no Brasil, revela Beto Marcelino, sócio-fundador do iCities.
Há mais de uma década, Marcelino tem atuado na promoção da cultura de inovação no ecossistema de Curitiba. Foi com essa intenção que nasceu o Smart City Expo Curitiba para discutir como as cidades podem se preparar para serem competitivas em um cenário global, atraindo investimentos e se posicionando como polos de inovação.
Este propósito levou o iCities, de Marcelino e outros sócios, a se tornar uma das principais empresas em consultoria para cidades inteligentes do país. Em colaboração com o Sebrae, o iCities já capacitou mais de mil cidades brasileiras por meio de programas como Cidade Empreendedora, Prefeitos do Futuro e Prefeituras Empreendedoras. Esses programas têm como objetivo preparar gestores públicos para implementar soluções inteligentes em suas cidades.
A aposta no desenvolvimento de capital do Paraná e demais municípios do país incentivou o iCities a promover só em 2024, além do Smart City Expo Curitiba, outros dois eventos com a chancela da Fira Barcelona, o IoT Latin América, em São Paulo, e o Tomorrow Blue Economy, que terá sua primeira edição no início de dezembro em Niterói (RJ). A discussão da economia azul também vai integrar a edição de 2025 do Smart City Expo Curitiba que, além do Tomorrow Mobility, sobre mobilidade futura, também vai receber o novo Tomorrow Building, sobre construções inovadoras – todos com a chancela da Fira.
No seu maior evento sobre o tema, Curitiba quer seguir mostrando que segue na vanguarda dos temas que a levaram a se tornar a cidade mais inteligente do mundo em 2023 pela Fira Barcelona.
Fonte: gazzconecta