Nos contos de terror (ou especiais do Scooby-Doo) o desenrolar das faixas das múmias é um momento especial de tensão e terror. Com faixas esfarrapadas, olhos brilhantes e visual grotesco, as múmias egípcias fazem parte do imaginário de terror criado por europeus nos últimos séculos. Na realidade, os restos humanos mumificados são bem menos assustadores, e oferecem uma viagem no tempo especial para a vida no Egito de milênios atrás.
Agora, pesquisadores do Field Museum of Natural History, nos EUA, examinaram múmias egípcias sem mover uma única faixa. Durante quatro dias, os corpos de 26 múmias que estavam expostos no museu foram examinados dentro de seus caixões através do exame de tomografia computadorizada.
O objetivo era descobrir novos detalhes de suas identidades e de como foram preparados para a vida após a morte. A tecnologia cria várias imagens do interior do caixão e, quando sobrepostas, as imagens permitem explorar o sepultamento em 3D.
Assim, as digitalizações ficarão guardadas de forma permanente, eternizando um corpo que, mesmo lentamente, está se decompondo. Sem destruir nada, as tomografias oferecem a rara oportunidade de investigar a história a partir de um único indivíduo, disse, em comunicado, Stacy Drake, gerente de coleções de restos humanos do Field Museum.
“Essa é uma ótima maneira de vermos quem eram essas pessoas – não apenas as coisas que elas faziam e as histórias que inventamos sobre elas, mas os indivíduos reais que viviam naquela época.”, completa.
Como funcionavam os rituais de mumificação?
Em geral, o ritual de mumificação levava 70 dias, entre tarefas de preparação biológica e espiritual. O sal era utilizado para desidratar os corpos, que eram envolvidos em lençóis, acompanhados de orações e amuletos de proteção.
Os órgãos internos eram removidos e colocados em potes canópicos decorados como deus protetor daquele órgão. Imseti, um deus de figura humana, protegia o fígado. Hapi, um babuíno, os pulmões. O estômago ficava com Duamutefe, um chacal. E os intestinos, com o falcão Quebesenuefe. O coração não era removido, pois acreditava-se que ele seria o lar da alma.
Entretanto, os pesquisadores descobriram que alguns embalsamentos optavam por armazenar os órgãos em pacotes e guardá-los dentro do corpo novamente. Para identificar cada órgão, um segredo: dentro de cada pacote havia uma pequena estátua de cera do respectivo deus protetor.
Lady Chenet-aa, uma múmia de visão
Um dos corpos analisados foi o de Lady Chenet-aa, que viveu há cerca de 3 mil anos. Com o novo exame, cientistas descobriram que ela morreu entre os 30 e 40 anos e que seus dentes foram prejudicados por uma dieta que provavelmente continha grãos de areia na comida.
Os exames também revelam que Chenet-aa tinha olhos suplementares colocados em suas órbitas oculares para garantir que fossem levados com ela para a vida após a morte.
“A visão dos antigos egípcios sobre a vida após a morte é semelhante às nossas ideias sobre poupança para a aposentadoria. É algo para o qual você se prepara, coloca dinheiro de lado durante toda a sua vida e espera ter o suficiente no final para realmente se divertir”, disse, no mesmo comunicado, JP Brown, pesquisador do Field Museum. “As coisas que eram colocadas são muito literais. Se você quer olhos, então precisa haver olhos físicos ou, pelo menos, alguma alusão física aos olhos.”
A tomografia de Lady Chenet-aa também desvendou um mistério: ninguém sabia como a sua cartonnage, caixa funerária ao seu redor, havia sido fechada. Não havia emendas visíveis, apenas uma pequena abertura na altura dos pés, e ninguém sabia como ela havia sido colocada lá.
pela primeira vez, a visão do interior permite entender como a cartonnage foi montada. “Você pode começar a ver que há uma costura na parte de trás e alguns laços”, disse Brown.
Eles agora sabem que a cartonnage não era construída ao redor do corpo. Na verdade, a múmia era colocada de pé e, em seguida, o “caixão” era amolecido com água até ficar flexível o suficiente para ser moldado ao redor do corpo. Em seguida, uma fenda na parte de trás era cortada da cabeça aos pés e abaixada sobre o corpo embrulhado. A fenda era amarrada e fechada novamente, e um painel de madeira era colocado nos pés e depois fixado no lugar para manter tudo unido.
Uma múmia viajante
Os pesquisadores também investigaram uma múmia famosa: um homem chamado Harwa. Ele era porteiro do celeiro do 22º Reino e, apesar de ter morrido com uma idade avançada para o período, por volta de 40 anos, sua coluna não apresenta sinais imediatos de doenças decorrentes do trabalho físico repetitivo. Além disso, seus dentes extremamente bem cuidados reforçam seu alto status social, pois ele tinha acesso a alimentos de alta qualidade.
Independente do que havia no seu sepultamento, o pós-morte de Harwa foi agitado na Terra. Ele foi a primeira pessoa mumificada a viajar de avião, em 1939, quando foi levado para Nova Iorque. Lá, ele foi recebido com uma intensa programação que incluiu assistir um show da Broadway. Dois anos depois, ele se tornaria a primeira múmia a ser extraviada em um aeroporto.
Essa era a forma com que as múmias foram tratadas historicamente, bem diferente da abordagem mais atual que tenta ser mais respeitosa com os restos de humanos. Entre o século XI e o XX (isso mesmo, até menos de cem anos atrás), incontáveis múmias foram retiradas do Egito e levadas para a Europa para serem consumidas como alimento, remédios e até tinta. Existiam até eventos públicos que atraíam multidões curiosas para acompanhar o desenrolar das múmias.
Os padrões éticos da arqueologia
As práticas bizarras não levavam em conta o respeito que geralmente se tem em relação aos mortos e seus sepultamentos. Nos últimos tempos, as exigências éticas são mais rigorosas, e a arqueologia discute mais as controvérsias e implicações da área.
“Hoje, nossos padrões de cuidados com os restos mortais humanos enfatizam que eles são pessoas individuais que merecem dignidade e respeito. Cada uma dessas pessoas teve vidas e famílias.” diz o comunicado do Field Museum. “O cuidado com que esses indivíduos foram embalsamados e os detalhes pessoais em seus restos mortais revelam quão pouco a humanidade mudou ao longo dos milênios.”
É uma lógica muito bem explicada pela bioarqueóloga indígena Bibi Nhatarâmiak, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais. Em seu mestrado, ela investigou um sepultamento encontrado em Minas Gerais, que consiste nos ossos de uma criança, pintados de vermelho, guardados em uma casca de árvore.
Fonte: abril