Os Homo sapiens surgiram na África há cerca de 200 mil anos. Desde então, as comunidades humanas viveram a maior parte da sua existência de forma nômade, migrando de um lugar para o outro. Os primeiros dois terços da nossa história se passaram exclusivamente na África, e foi só há cerca de 60 mil anos que as populações começaram, lentamente, a migrar para outros continentes.
Saindo da África, os humanos seguiram se espalhando pelo norte, em direção à Ásia e à Europa. A migração para a Oceania se deu através das ilhas do sul da Ásia há cerca de 60 mil anos, e a América foi o último continente a ser ocupado.
A data exata da chegada às Américas, porém, é um tópico de debate acirrado entre os cientistas, já que existem teorias que disputam entre si. O consenso científico – ou seja, o que a maioria dos cientistas acredita – é que o povoamento veio da Sibéria para o Alasca, no norte da América do Norte, através de uma passagem chamada Estreito de Bering, há cerca de 14 mil anos. Seria algo relativamente recente, então.
Entretanto, existe outra versão que se baseia em evidências muito mais antigas do que essas, e argumenta que os humanos já viviam nas Américas há mais de 20 mil anos. Essa teoria é fundamentada por achados arqueológicos diversos, como adornos feitos de ossos de preguiça-gigante de 25 mil anos atrás encontrados no mato grosso.
Algumas versões mais extremas dessa linha de pensamento chegam a cogitar humanos por aqui há chocantes 130 mil anos, com base em ossos de mastodontes supostamente arranhados por humanos que datam dessa época, achados na Califórnia, nos EUA. Essa hipótese, porém, é minoritária.
No Brasil, uma das principais defensoras dessa perspectiva é a arqueóloga Niéde Guidon, que é responsável pela criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, onde foram encontrados restos de fogueiras que supostamente teriam mais de 50 mil anos.
Independentemente de quando chegaram até às Américas, as populações humanas passaram a se espalhar pelo continente através de duas diferentes correntes: uma seguiu a costa oeste do continente, descendo pelo oceano Pacífico e chegando bem mais rápido na ponta da América do Sul. A outra seguiu pelo centro da América do Norte, em uma rota que não tinha gelo, e se espalhou em várias outras correntes migratórias a partir da região em que hoje é os Estados Unidos.
Todas essas informações são obtidas a partir de evidências de vários tipos: a arqueologia e a paleontologia podem estudar restos de humanos que morreram há muito tempo, de ferramentas que eles deixaram, restos de animais domesticados ou atacados por humanos, vestígios de construções, cemitérios etc. Tudo isso pode ser analisado geneticamente, anatomicamente e culturalmente, além de comparado entre si e com outros materiais encontrados pelo mundo.
Com todas essas peças, os cientistas tentam montar um panorama histórico complexo, que vive sendo atualizado e rediscutido. Para entender um pouco mais sobre a história dos humanos nas Américas, a Super conversou com Mara Hutz, doutora em genética e biologia molecular e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em parceria com o biólogo Fabrício Santos, ela é autora de um dos capítulos do livro A Evolução é Fato, que conta com a participação de 28 pesquisadores brasileiros. Você pode baixá-lo gratuitamente aqui. A obra aborda diferentes fases da evolução na Terra, de um jeito simples e fácil de ler. O livro levou três anos para ficar pronto, e foi feito pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), que se manteve atualizada das descobertas científicas durante todo o processo.
A professora enfatiza que o conhecimento sobre essa história das Américas pode ser um elemento para a defesa dos povos nativos. “Conhecer essa história evolutiva é muito importante para para reconhecer os direitos dos povos indígenas atuais, para a demarcação das terras indígenas e a preservação da cultura ameríndia”, diz.
“Eu não vejo isso nas discussões sobre demarcação de terras indígenas, sobre a preservação da cultura indígena. Essa é uma posição pessoal minha: eu acho que isso tem que ser levado em consideração, porque indica a importância de preservar essa cultura que está praticamente em extinção. E a gente não deve deixar isso acontecer”, acrescenta Hutz.
A entrevista a seguir faz parte de uma série de entrevistas que a Super publicou com os autores do livro.
Quais são os diferentes tipos de evidências utilizadas para ajudar a recompor a história da imigração humana para as Américas?
Hutz: São muitas evidências. Tem evidências arqueológicas, genéticas e antropológicas. Às vezes se avalia em formato de crânio, de dente. Tudo isso é levado em conta, somado às informações do genoma. São muitas evidências que são levadas em consideração para conseguir chegar nessas hipóteses que a gente resolveu.
E essas evidências geralmente atualizam as hipóteses ou corroboram teorias feitas há muito tempo?
Hutz: As duas coisas acontecem. Algumas teorias são corroboradas, outras são abandonadas. Não tem uma resposta única. Os novos achados corroboram algumas teorias antigas, mas adicionam fatos novos. Então, aumenta a complexidade daquilo que a gente tem como evidências.
Cada tijolinho que é acrescentado permite uma interpretação um pouco diferente. Não é uma coisa linear, simples, não é uma troca de uma teoria pela outra.
Hoje, o consenso o que a gente escreveu, ou seja, a maioria dos cientistas que pesquisam a área está de acordo. Se a maioria concorda com uma determinada hipótese, ela vira consenso.
Existem duas hipóteses fortes e bem diferentes sobre o tempo do povoamento das Américas, uma mais antiga e outra mais recente. Por que o texto afirma que elas não são necessariamente mutuamente exclusivas?
Hutz: Porque pode ter havido uma colonização mais antiga mas que não deixou descendentes nos ameríndios atuais. Essa população teria sido substituída por outras levas de imigrantes e se extinto sem deixar descendência.
Nós sempre tendemos a pensar nas coisas de forma linear, mas não necessariamente é assim. Pode ter havido uma segunda leva ou uma terceira leva que substituíram os primeiros habitantes da América do Sul.
E o que isso tem a ver com a migração mais tardia dos indígenas da América do Norte?
Hutz: Na verdade, não são bem os da América do Norte. O que aconteceu é que os esquimós-aleutas do Alasca tiveram uma outra leva mais recente, e essa já não migrou mais para o sul. Podemos saber isso porque eles têm características mais similares às populações asiáticas, que seriam os ancestrais.
Desde a saída do homem da África, 60 mil anos atrás, mais ou menos, o homem vem se adaptando, mudando. Quer dizer, o homem que saiu da África era mais parecido com os africanos atuais. E hoje existem pessoas loiras, de olhos azuis, com os olhos “puxados”. Então, quanto mais tempo passava-se de uma separação, mais tempo a população tem de se adaptar a novos ambientes, desenvolver novas características, novas mutações.
Com base nisso, conseguimos fazer datações. E as populações nativas das Américas, como são de uma ocupação mais recente, não têm tanta diversidade quanto podemos ver em outros continentes. Com isso, sabemos que os esquimós-auletas tiveram menos tempo de divergência.
Fonte: abril