Este é o 33º texto do blog Deriva Continental, escrito por Paulo Gorayeb, Professor Titular do Instituto de Geociências/Universidade Federal do Pará
Há aproximadamente 800 milhões de anos, durante uma era que geocientistas chamam de Neoproterozoico, formou-se uma extensa bacia oceânica na região atualmente situada no Centro-Norte do Brasil, mais precisamente no sudeste do Estado do Pará e em grande parte Estado do Tocantins, denominado “Oceano Araguaia”. Na época, ele se estabeleceu no oeste do antigo Supercontinente Gondwana (vide A história do Supercontinente Gondwana).
Estendendo-se preferencialmente na direção norte–sul, a dimensão original desse oceano ainda não está totalmente estabelecida. Entretanto, os registros geológicos apontam para milhares de quilômetros que separavam duas grandes massas continentais muito antigas, os chamados crátons Amazônico e São Francisco.
Posteriormente, processos geológicos levaram à formação do chamado Orógeno Araguaia, cujos registros estão nos relevos remanescentes de uma cordilheira que existiu no centro norte do Brasil. Veja a Figura 1.
Há registros de situações semelhantes com ramificações por Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais (nos orógenos denominados Cinturão Paraguai e Cinturão Brasília), e no nordeste do Pará e noroeste do Maranhão (no que geocientistas denominam Cinturão Gurupi e Cráton São Luís). Também há feições geológicas correlatas na África Ocidental (Cinturão Rokelides), sendo esta uma das muitas evidências de que os continentes Sul-Americano e Africano estiveram unidos há mais de 150 milhões de anos na Era Mesozoica, ambos fazendo parte do Continente Gondwana.
Ao longo de sua evolução, a extensa bacia relacionada à formação do Oceano Araguaia recebeu enorme carga de materiais inconsolidados (ou seja, sedimentos) provenientes das áreas continentais adjacentes, que foram depositados sucessivamente por milhões de anos.
Na sua reconstituição se reconhecem diferentes ambientes de sedimentação, tais como lagoas (deposição de argilas), sedimentos costeiros de praia (deposição de areias, argilas, calcários), ambientes mais afastados da zona de costa, no Talude Continental (deposição de argilas, calcários, turbiditos) e em ambientes abissais, mais afastados ainda, depositados em águas profundas no assoalho oceânico (depósitos pelágicos: cherts, argilas vermelhas, sedimentos vulcanogênicos).
As lavas basálticas, o assoalho oceânico e os peridotitos do Manto Superior
A progressiva e contínua expansão do assoalho oceânico, deposição de sedimentos e aprofundamento da bacia, ao mesmo tempo em que as margens continentais se afastavam (com certa semelhança ao que ocorre entre o Brasil e África atualmente), resultaram no adelgaçamento da crosta, criando uma instabilidade e levando à ascensão do Manto Superior da Terra. Com isso, foram expostas grandes porções das rochas ferromagnesianas típicas desse ambiente, o chamado peridotito, rico em olivina e piroxênio.
Também se deu início a uma intensa e extensiva atividade vulcânica, com extravasamento volumoso de lavas basálticas, principalmente na porção mediana da bacia, formando uma litosfera oceânica se estabelecendo um assoalho oceânico de natureza basáltica, em associação com rochas do Manto Superior e rochas sedimentares de ambientes marinhos profundos.
Os registros geológicos disso são representados pela associação de peridotitos sucedidos por derrames de lavas basálticas e rochas sedimentares químicas, visualizados nas figuras 2 e 3. A associação desses três conjuntos de rochas é denominada “Ofiolito” – e é considerado por geocientistas como um registro clássico da existência de um oceano muito antigo (ou páleo-oceano, na linguagem científica).
As almofadas de lavas
A evidência mais significativa do fundo deste páleo-oceano é a presença sistemática de estruturas do tipo “lavas em almofadas” (pillow lavas) que se formam nas superfícies dos derrames e nas frentes de extravasamento das lavas basálticas. Elas se formam pela interação e dinâmica das corridas e solidificação de lavas de alta temperatura (~1200 ºC) em contato com as águas marinhas. Veja o esboço do perfil de um Ofiolito e fotos representativas na Figura 2.
Exemplos dessas rochas representativas do Páleo-Oceano Araguaia são observados em diversos afloramentos na Serra do Tapa e na Serra do Quatipuru, no sudeste do Estado do Pará, e em muitos morros e colinas reconhecidos nas proximidades das cidades de Conceição do Araguaia, Santa Maria das Barreiras no sudeste do Pará. Também são encontradas em Couto Magalhães, Araguacema, Pequizeiro, Juarina, Pau D’Arco, Dois Irmãos, Arapoema e Paraíso do Tocantins no noroeste do Estado do Tocantins.
Devido à beleza expressa por essas rochas – que podem ter variados tons de verde e marrom, amarelo, preto e branco, causados por transformações metamórficas – e às feições morfológicas abauladas, caracterizadas por estruturas semelhantes a um amontoado de almofadas, esses basaltos têm sido explorados comercialmente para o fatiamento de placas polidas para uso como revestimento na construção civil, com alto valor comercial. Elas foram exportadas para o exterior, ficando poucos exemplares no Brasil, com o nome “Vitória Régia”, devido sua semelhança com as folhas esverdeadas e arredondadas da planta aquática dos rios da Amazônia (veja na Figura 3A).
Recentemente, recebi uma mensagem de um geólogo australiano que tem em sua casa uma bancada com a tal “Vitoria Régia”. Ao ler o artigo científico que publicamos no Journal of South America Earth Science, (Serra do Tapa Ophiolite Suite – Araguaia Belt: Geological characterization and Neoproterozoic evolution, central-northern Brazil), ele me contatou para saber a origem da placa de sua mesa de café instalada em sua residência na Austrália. Imediatamente reconheci como proveniente de uma pedreira no sudeste do Pará. Após receber minha resposta, ele demonstrou grande interesse científico em visitar os afloramentos da região onde foi extraído esse exemplar de basalto almofadado, pois é um dos mais belos exemplares conhecidos no Brasil.
Realmente, há um grande interesse científico no estudo das lavas em almofada devido ao fato de facilitar a interpretação dos processos de sua formação e compreensão dos páleo-oceanos, que são importantes para investigar o ambiente de deposição das lavas, a profundidade do nível da água e a direção dos fluxos da lava, etc. Tudo isso pode ser determinado pelas formas, posições e tamanhos das almofadas, pelas texturas e associações minerais cristalizadas, mas os seus detalhes e características peculiares são difíceis de serem reconhecidos por muitos geólogos.
Além de tudo isso, nos permite entender os processos que levam às transformações causadas pelas reações entre as lavas altamente aquecidas, geradas em grande profundidade no Manto Superior, e a água do mar, bem como os processos de formação de depósitos minerais associados. Assim, conseguimos entender melhor como o nosso planeta evoluiu ao longo da história.
Após esta fase de significativa importância na história do Páleo-Oceano Araguaia, a evolução geológica do terreno não parou aí. Há ainda muitas atividades que, devido à dinâmica da Terra e, consequentemente, aos movimentos tectônicos, modificaram integralmente esse quadro ao longo do Tempo Geológico.
Após o preenchimento sedimentar e o magmatismo, que em várias fases ao longo de milhões de anos (aproximadamente entre 800 e 500 Ma), a bacia resultou em espessuras da ordem de milhares de metros. Alguns exemplos disso podem ser observados na Figura 4, destacando-se os principais tipos de sedimentos que se transformaram em rochas metamórficas.
A inversão da Bacia Araguaia e a formação da cadeia de montanhas
Em torno de 600 milhões de anos atrás, houve uma mudança significativa do regime tectônico. Os movimentos divergentes (ou seja, de afastamento) que haviam sido responsáveis pela geração do Páleo-Oceano Araguaia, nesta fase já com uma espessa pilha de rochas na bacia, atingiram um limite insustentável e foram sucedidos por movimentos convergentes (de colisão). Isso levou a instabilidades do substrato oceânico e ao colapso e fragmentação da litosfera oceânica, cuja colisão promoveu deformações gerando dobras, falhas de cavalgamento, aumento significativo da espessura da crosta e deslocamentos de massas rochosas em direção ao continente oeste (o Cráton Amazônico).
Nessa etapa, as rochas originais sofreram transformações significativas, recristalizando e formando novas associações minerais com mudanças texturais significativas devido ao reposicionamento das camadas rochosas em novos ambientes e locais da crosta mais profunda (soterramento), causando aumento da temperatura e pressão, transformando-as em rochas metamórficas (veja Figura 4).
Na sucessão dos processos geológicos, mais tarde, um novo magmatismo se sucedeu com a intrusão de vários plútons de natureza granítica nas zonas de maior intensidade termal. A Figura 5 apresenta as principais fases de evolução geológica do Cinturão Araguaia ao longo do Neoproterozoico.
Nessa fase da evolução geológica dessa região, esses movimentos tectônicos levaram à compressão e colisão das massas continentais propiciando o soerguimento das pilhas de rochas, o que resultou na formação de uma cadeia de montanhas a qual denominamos Orógeno Araguaia.
Os últimos movimentos tectônicos dessa longa e diversificada história estão registrados na região de Tucuruí, no nordeste do Pará, onde causaram um novo quebramento e afundamento da crosta continental, com movimentos verticais de falhas, formação de bacias restritas tipo rifte, com desmoronamento e transporte de detritos das áreas elevadas, e sedimentação nesta nova bacia. Novo evento de vulcanismo se sucedeu com extravasamento de lavas basálticas, por volta de 500 milhões de anos atrás.
Todos esses eventos geológicos aconteceram em um conjunto de processos reconhecidos na geologia do Brasil e denominado Ciclo Tectônico Brasiliano. As figuras 5 e 6 mostram as principais fases de evolução do Orógeno Araguaia, os eventos magmáticos e outros processos, ordenados cronologicamente.
Após um longo período de calmaria tectônica, os processos de intemperismo, erosão e transporte de detritos modelaram o relevo, rebaixando a cordilheira continuamente, por milhões de anos, levando enfim ao surgimento das planícies dos rios Araguaia e Tocantins (vide Figura 1).
Os registros e a investigação geológica
Atualmente, os registros do Orógeno Araguaia estão identificados pela grande variedade de tipos de rochas sedimentares, magmáticas e metamórficas, suas estruturas, texturas, composições químicas, associações mineralógicas e empilhamento litoestratigráfico das sucessões rochosas geradas em diferentes níveis crustais, reconhecidas em terrenos no centro-norte do Brasil, e pelos remanescentes geomorfológicos na região, a exemplo da Serra das Cordilheiras, Serra do Estrondo e Serra das Andorinhas-Martírios, e por inúmeras colinas alinhadas na direção Norte-Sul.
Todos esses registros, obtidos em muitos anos de observações em afloramentos, levantamentos de campo, análises laboratoriais, datações de rochas em investigações cuidadosas, a partir do olhar curioso, investigativo e habilitado do Geólogo é que nos permitiram reconstituir os principais cenários e a história pretérita, e compreender o Páleo-Oceano Araguaia e a formação de novas massas continentais na porção centro-norte do Brasil.
Fonte: abril