A dissertação de mestrado da médica pediatra e psicanalista Luci Pfeiffer ultrapassou os muros da universidade. Isso aconteceu quando, ao utilizar os conhecimentos adquiridos na pesquisa, decidiu criar um programa para atender crianças e adolescentes vítimas de violências graves e gravíssimas: o DEDICA – Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
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O trabalho foi iniciado em 2004 como um voluntariado feito pelos profissionais do serviço de pediatria do Hospital de Clínicas, em Curitiba. Na época, eram atendidas todas as quartas-feiras, de 40 a 60 pessoas, entre crianças e adolescentes vítimas de violências graves e gravíssimas, e também seus responsáveis e os agressores. De lá pra cá já foram realizados pelo menos 55 mil procedimentos, desde o atendimento até a busca de proteção e encaminhamento das crianças junto ao Ministério Público e Varas da Infância.
“Não estamos vinculados a nenhuma instituição governamental”, conta Luci. Ela explica que o programa recebe crianças que necessitam de medidas de proteção encaminhadas tanto pelas varas criminais e da infância, como do Ministério Público, das delegacias, do conselho tutelar, das escolas, das unidades de saúde, do CREAS, do CRAS, assim como de tantas outras instituições que se ocupam da assistência à criança e ao adolescente que sofrem violências graves e gravíssimas.
O propósito principal do programa é interromper o ciclo de violência transmitido entre as gerações, que tem acontecido com maior crueldade e intensidade ao longo dos anos. “Queremos oferecer às vítimas a possibilidade de reler suas histórias para que saiam do sentimento de culpa e deixarem de acreditar que são pessoas de menor valor ou que são a causa da violência que sofrem”, destaca a coordenadora do DEDICA.
Sendo mantido há seis anos pela Associação dos Amigos do Hospital de Clínicas, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o programa conta com uma sede própria, na capital paranaense. São atendidas 200 crianças por semana e é feito o acompanhamento daquelas inseridas no contexto familiar, buscando encontrar condições de tratamento ou atuando na proteção das que são afastadas de suas residências, inclusive em audiências judiciais.
Além disso, “no eixo da proteção, temos vários trabalhos de conscientização e campanhas, desde a ‘Conecte-se ao que Importa’, que fala das violências do mundo virtual, os abandonos dos genitores das crianças pelas telas, até a última campanha ‘No Passo da Proteção’, em que falamos dos crimes que são do mundo real e que acontecem por meio do mundo virtual”, conta a médica.
Atendimento multidisciplinar realizado de forma lúdica
A grande maioria das crianças e
adolescentes vítimas de violência recebem, erroneamente, diagnósticos de
déficit de atenção, hiperatividade e até mesmo de depressão, bipolaridade e
autismo, quando na verdade os sintomas são consequência das violências que sofrem.
“Infelizmente, muitos acreditam ser mais fácil encaminhá-las como doentes mentais pelos seus sintomas do que escuta-las ou avalia-las, e fazer o mesmo com suas famílias, para saber que os sintomas vêm de muitas violências e não vão sarar com tratamento de sintomas mentais que elas não têm”, lamenta a coordenadora do programa.
Por isso, o DEDICA oferece assistência de
forma interdisciplinar e intersetorial, com profissionais da área da pediatria,
psicologia, psicanálise, psiquiatria, assistência social, psicopedagogia,
apoiado por um setor administrativo e por todo setor de manutenção da
Associação dos Amigos do HC. “Ao recebermos a criança ou adolescente, iniciamos seu
acompanhamento por uma avaliação geral para podermos compreender as violências
das quais ela foi vítima, o nível de gravidade e a extensão dos danos físicos,
psíquicos, cognitivos e de aprendizagem decorrentes”, relata a psicóloga
Josmeri do Nascimento.
Desta forma, além de inserir a vítima imediatamente no programa para atendimento psicológico, é observada a necessidade do acompanhamento da equipe multidisciplinar, para que as crianças e adolescentes tenham um tratamento digno e integral em um único local, acrescenta ela, que trabalha no DEDICA desde maio de 2019.
O tratamento, segundo a psicóloga, se dá através da ludicidade. “No ato de brincar, o profissional tem acesso ao mundo interior da criança e às raízes das dores que a afligem, já que ela externaliza os seus pensamentos, sentimentos, medos e angústias, repetindo os padrões das relações disfuncionais as quais foi submetida”, explica a profissional.
Assim, para os atendimentos os
profissionais utilizam recursos como jogos, música, pintura, argila, livros,
bonecos, brinquedos e tudo que possa contribuir para acessarem os conteúdos e
traumas que geraram sofrimento e angústia, manifestando através dos sintomas os
mais diversos.
Buscar a superação do trauma através do acolhimento
São tantos casos preocupantes atendidos pela equipe do DEDICA que, quando se pensa que já se esgotou a pior história, os profissionais se deparam com outra pior, desabafa Luci. “Estamos em contato diário com casos que as pessoas pensam que só existem na TV, mas na verdade são reais!”, acrescenta Josmeri ao se recordar das diversas situações que já lhe impactaram. “Atendemos, semanalmente, 180 histórias de dor e muito sofrimento. Se nada sentíssemos não seríamos humanos”, desabafa.
Mas, para superar a tristeza e angústia experimentadas ao aprofundarem-se nas histórias das vítimas de violência, os membros do programa apostam na capacidade de reestruturação emocional das crianças e adolescentes. “Em meio a todo o caos, elas sonham em ser médicos, psicólogos, policiais, advogados, juízes. E temos muitas histórias de superação, que nos levam às lágrimas”, alegra-se a psicóloga.
Por isso, Luci acredita que não se pode deixar que a violência se perpetue e que marque as estruturas de personalidade de uma pessoa, porque daí teremos autoagressores, novos agressores ou até mesmo aqueles que buscam a morte já na infância e adolescência. “Quando a criança entende que não é a causa da violência e começa a se dar valor como grandes heróis, sobreviventes de um mundo adulto totalmente desiquilibrado, passam a brincar, sorrir e ter metas”, destaca Luci.
Por isso, o atendimento psicológico das vítimas de violência física, psíquica, sexual e de omissão é de extrema importância, para que lhes seja dada a oportunidade de resgatar sua autoestima, autonomia e principalmente a subjetividade de sua infância/adolescência que, de alguma form, foi afetada por um contexto abusivo e violento, destaca Josmeri.
A associação dos amigos do Hospital de Clínicas
A Associação dos Amigos do Hospital de
Clínicas da UFPR, mais conhecida como Amigos do HC, é uma Organização da
Sociedade Civil sem fins lucrativos que atua na defesa dos direitos e promoção
da saúde. “Tem o compromisso de melhorar a qualidade do atendimento aos
pacientes SUS, assim como seus familiares e acompanhantes de tratamento”,
explica Luci.
E, desde 2016, prestam assistência
interdisciplinar para crianças e adolescentes vítimas de violências graves e
gravíssimas por meio do Programa DEDICA – Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente.
Para contribuir especificamente com o Programa DEDICA, não há possibilidade de ser voluntário, porque a equipe é formada por profissionais contratados e qualificados para acompanhar os casos de agressão, exigindo proteção legal e sigilo dos atendimentos. Porém, ao contribuir com os Amigos do HC você também apoiará o Programa DEDICA, especialmente com a destinação do imposto de renda, assim como por doações diretas pelo site.
E, claro, cada um pode ser parceiro ao
olhar as crianças a sua volta, encaminhando-as para atendimentos, mesmo que não
no DEDICA, em suspeita de violência. “Uma denúncia, um alerta, um aviso, pode
salvar muitas vidas. Não podemos ser cegos a destruição de crianças e
adolescentes. O caminho, muitas vezes, é o que temos”, conclui a médica
fundadora do programa.
Fonte: semprefamilia.com.br