No final de julho, um grupo de físicos da Universidade da Coreia afirmou ter encontrado um material supercondutor, batizado com o código LK-99, capaz de um feito inédito: conduzir eletricidade sem resistência em condições normais de pressão e temperatura. Prêmio Nobel é pouco para uma alegação dessas. A última vez que o trabalho de físicos experimentais teve tanto potencial para mudar a história provavelmente foi a invenção do transistor em 1948, que permitiu os computadores e celulares atuais.
Um supercondutor que não exige frio nem pressão extremos para funcionar tornaria possível, em tese, construir computadores quânticos que operam em temperatura ambiente – hoje, eles exigem refrigeração –, máquinas de ressonância magnética mais baratas e uma rede elétrica quase 100% eficiente, que resultaria em um descontaço bem-vindo nas contas de luz.
Eles também tornariam mais baratos os trens Maglev, que flutuam sobre os trilhos por causa do chamado efeito Meissner (se você colocar um supercondutor sobre um ímã, ele levita). Com atrito fora da equação, dá para alcançar velocidades acima de 500 km/h. Hoje há apenas seis linhas de Maglev no mundo – a mais longa com 30 km, em Xangai – porque o sistema de refrigeração é caríssimo. Sem esse empecilho, o jogo muda. E trens rápidos poderiam substituir a aviação civil em trajetos regionais.
Só tem um problema nessa utopia toda: há uma chance razoável de que o LK-99 seja um alarme falso. O que o põe em uma família grande. Dos anos 1990 para cá, outros materiais que pareciam bons candidatos a esse Santo Graal da engenharia também acabaram decepcionando os físicos.
O primeiro supercondutor, descoberto em 1911 pelo holandês Heike Onnes, só funcionava a uns -270 ºC – quase o zero absoluto –, e por isso exigia resfriamento com hélio líquido, um material caro que impossibilita muitas aplicações em larga escala.
Quase cem anos depois, em 1986, dois pesquisadores da IBM – Georg Bednorz e Alexander Müller – descobriram o primeiro dos supercondutores de “alta temperatura”, que funcionam nos arredores dos -200 ºC. Esse aumento de mais de 80 ºC em relação ao zero absoluto foi suficiente para tirar o hélio líquido da jogada e usar nitrogênio líquido, mais barato, para resfriar as amostras. Um trunfo que tornou tanto pesquisas como aplicações práticas muito mais simples, e que deu início a uma caçada por temperaturas ainda mais altas.
A prova dos trinta
A ciência funciona com base na replicação: quando um laboratório anuncia uma descoberta, outros correm para reproduzi-la. Afinal, há muitas coisas que podem dar errado em um experimento (inclusive o otimismo dos experimentadores, que acabam vendo resultado onde não tem na hora de interpretar os dados). A descoberta de Bednorz e Müller foi um exemplo perfeito de replicação, já que as cerâmicas supercondutoras derivadas do trabalho da dupla eram simples o suficiente para fabricar em um laboratório de ensino médio – e um litro de nitrogênio líquido custa o mesmo que um litro de leite.
“Eu estava na Universidade de Tel Aviv, nos anos 1980, quando apareceram os supercondutores de alta temperaturas”, conta à Super Leandro Tessler, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), da Unicamp. “Um colega meu que trabalhava com óxidos correu para o laboratório e seguiu a receita. Você põe uns pozinhos em um pilão, amassa, prensa, depois vai para o forno. Em um dia a gente conseguiu reproduzir o experimento. E era um supercondutor mesmo.”
Era de se esperar, de acordo com Tessler, que o mesmo acontecesse após o anúncio do LK-99. Mas as sete tentativas de replicação do experimento sul-coreano que haviam sido divulgadas até a conclusão deste texto da Super não trazem boas notícias. Três não encontraram nenhuma evidência de supercondutividade, e as outras quatro identificaram apenas alguns dos pré-requisitos (a levitação por efeito Meissner não é o único).
Vale lembrar que todos os trabalhos mencionados, bem como o próprio trabalho original dos coreanos, são pré-prints, ou seja: ainda não foram revisados por outros cientistas nem publicados em periódicos especializados. Esses resultados negativos preliminares, porém, corroboram o ceticismo generalizado entre os físicos entrevistados pela Super e por dezenas de outros veículos – já acostumados a alegações de supercondutividade que morrem na praia.
“O grupo que realizou o trabalho não parece ter tradição em pesquisas com supercondutores. Isso pode ser ruim ou bom, já que um outsider pode tomar um caminho que o resto da comunidade não está olhando”, diz à Super Narcizo de Souza Neto, chefe da divisão de matéria condensada e ciência de materiais do CNPEM, onde fica o acelerador de partículas Sirius, em Campinas. “Porém, a hipótese que eles propõem no artigo para explicar a supercondutividade do LK-99 não me parece correta.” De acordo com Narcizo, outros grupos, sem associação com os coreanos, encontraram caminhos mais plausíveis para explicar por que, em princípio, o LK-99 poderia funcionar. Mas é claro: sem verificação prática, não dá jogo.
No vídeo divulgado pelos coreanos, o LK-99 levita apenas parcialmente sobre um ímã. O que pode ser sinal de que há uma impureza no material. Ou, é claro, de que o material, na verdade, não é supercondutor. Para completar, os próprios autores do estudo, ao que tudo indica, se desentenderam sobre as conclusões – um membro da equipe soltou os PDFs sem autorização de dois pesquisadores mais velhos, que haviam identificado o material originalmente, em 1999.
Dá para descartar completamente o LK-99 como supercondutor? Ainda não. Mesmo que dez tentativas de replicação do experimento deem errado, sempre há a possibilidade de que algum detalhe tenha escapado ao sintetizar o material. Ideal mesmo, na opinião de Narcizo do CNPEM, seria que os coreanos distribuíssem suas próprias amostras para outros laboratórios.
Seja como for, essa história tem um desfecho positivo: a imprensa se mostrou cética desde o início com as alegações sobre o LK-99. Esse receio saudável mostra ao público leigo, na prática, como funciona o método científico: alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias, e a verificação de uma descoberta é um processo tortuoso de revisão e refação de experimentos. Nada parecido com a bagunça que foi, por exemplo, a divulgação dos estudos de má qualidade sobre a cloroquina durante a pandemia, que acabou motivando o desperdício de dinheiro público com um remédio ineficaz.
Fonte: abril