Sophia @princesinhamt
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Rebelião da população de origem estrangeira emerge como um desafio de segurança na França

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A Assembleia Nacional fez um minuto de silêncio e o presidente Emmanuel Macron falou em ato “indesculpável”. Durou pouco a compunção pela morte de um jovem de 17 anos, Nahel Merzouk, de origem argelina, diante da violência ensandecida que provocou, dos comentários de quem vê o sistema oficial totalmente dessintonizado da realidade – e dos fatos.

Uma amostra dos comentários:

“Tem que ser bandido para não parar quando a polícia manda”.

“O que o anjinho estava fazendo?”.

“Onde estão os pais e as mães que não mandam seus filhos ficar em casa?”.

Já deu para perceber que a situação não é muito diferente do que acontece no Brasil: imprensa e personalidades condenam a violência policial e exaltam a vítima inocente, mas o povaréu quer saber por que ele desafiou dois policiais de arma na mão com ordem para que parasse o carro em situação irregular, o que significa seu histórico de doze “episódios” de registros policiais, como é possível que, em nome do protesto a um ato de uso abusivo da força, lojas, escolas, farmácias, creches, prefeituras dos pequenos municípios que se emendam à região central de Paris e até obras para as Olimpíadas de 2024 sejam e saqueadas.

Não é impossível sentir uma certa pena de Emmanuel Macron, que administra uma crise emendada na outra desde seu primeiro mandato – coletes amarelos, pandemia, protestos contra a reforma das aposentadorias e agora a desordem geral desencadeada pela morte de Nahel.

Mas é incompreensível que ele tenha ido assistir a um show de Elton John enquanto a violência se espalhava e os policiais encarregados de levar pedradas e fogos de artifício na cara tinham que ouvir o presidente pedindo justiça rápida para o colega colocado em prisão preventiva. Desde quando presidente tem que pautar o ritmo da justiça e dos processos legais?

Foi uma manobra política errada e deu até para ouvir mais dezenas, talvez centenas, de milhares de votos caminhando para a direita nacionalista, de Marine Le Pen ou Éric Zemmour, que defendeu “uma repressão feroz”.

“Estamos no prólogo de uma guerra civil, uma guerra étnica, uma guerra racial”, insuflou o ex-candidato presidencial, acusando o governo de mandar a polícia recuar “por medo de que haja mortes”.

Esta última análise não deixa de ser verdadeira: imaginem a conflagração se a polícia entrasse em confronto letal com os “manifestantes”, entre aspas porque quem destrói e rouba postando depois no TikTok não tem nada a ver com o legítimo direito ao protesto.

A realidade da situação fora de controle baixou rapidamente e o governo, na prática, impôs um toque de recolher, com a suspensão dos transportes públicos a partir das 9 horas da noite. Os ministros envolvidos engrossaram o tom, prometendo enquadrar todos os que incitavam à baderna pelo Snapchat, considerando-se protegidos por um sigilo inexistente. Os pais de menores saqueadores também poderiam sofrer multas e até penas de prisão – as leis para isso já existem.

Mas as leis, obviamente, só podem funcionar quando a sociedade as aceita. Ou pelo menos acredita que, de alguma medida, serão aplicadas.

O que se vê, repetidamente, na França e em outros países com grande imigração árabe e africana é a rejeição não só à ordem social mas ao próprio país. Descendentes de terceira geração de imigrantes, em geral de religião muçulmana, simplesmente não se sentem franceses – ao contrário, odeiam seus compatriotas. Por que outro motivo, por exemplo, uma vitória do Marrocos na última Copa do Mundo provocaria incêndios e quebra-quebra, como aconteceu na França e na Bélgica? E por que um incidente ocorrido na França leva a protestos violentos em Lausanne, repetindo, Lausanne, na inabalavelmente tranquila Suíça?

Uma das maiores contradições, seja num bairro pobre do Rio, seja no cinturão em torno de Paris – onde o Estado é presente, com escolas, centros esportivos e outras iniciativas para integrar a juventude –, é que os mais afetados são justamente os moradores. É triste ver a desolação de pessoas diante de escolas queimadas até o alicerce ou mesmo carros incendiados, muitas vezes o principal bem material que têm seus proprietários. Quando a turba malta fica sem controle, o impulso autodestrutivo é grande. Sem contar os espertos – ou ladrões profissionais – que param seus carros diante de supermercados e centros comerciais e orientam os jovens sobre o que devem roubar. Exatamente como aconteceu nos Estados Unidos durante os protestos contra a morte de George Floyd.

O pior é que muitos franceses nem podem reclamar: aplaudiam violências similares quando os protestos contra a reforma da aposentadoria degeneravam para o quebra-quebra, plenamente justificado pelos partidos de esquerda. Depois de jogarem lenha na fogueira para instrumentalizar a morte de Nahel, eles diminuíram o tom, percebendo que a maioria da população fica revoltada com a situação caótica de desordem e destruição.

“Nosso país está na beira do precipício”, alertou Éric Ciotti, que é da direita tradicional e tenta não ser ultrapassado pela direita nacionalista. Está difícil. Descendentes de imigrantes árabes e africanos – assim identificados, pois não se vê na baderna vietnamitas nem cambojanos, duas populações de origem estrangeira importantes – que tocam fogo e destroem o patrimônio público são os melhores argumentos para políticos como Marine Le Pen e Zemmour.

Ciotti recebeu a seguinte depois de visitar uma cidade incendiada: “Se voltar aqui, vamos tacar fogo em você”. Depois de erguer barreiras com arame farpado para proteger sua prefeitura, o prefeito da cidadezinha de L’Haÿ-les-Roses, Vincent Jeanbrun, foi atacado brutalmente por outro lado: um carro em chamas arremeteu contra sua modesta casa, onde estavam a esposa e dois filhos pequenos. A mulher sofreu uma fratura grave ao jogar os filhos e pular o muro do quintal dos vizinhos, fugindo dos “manifestantes”.

É inacreditável que cenas assim aconteçam no coração da França que, em muitos sentidos, é também o coração da civilização ocidental. A camada civilizatória construída ao longo de milênios desaparece rapidamente quando as turbas assumem o controle.

Até a seleção francesa achou por bem se pronunciar a respeito, talvez para abrandar a manifestação de Kylian Mbappé logo no início do quebra-quebra, chamando o jovem morto de “pequeno anjo”, uma forte contradição com a realidade de um adolescente que já havia sido flagrado por posse de droga, receptação e circulação em carro sem carteira nem licença. “Depois do trágico acontecimento, assistimos a explosão de uma cólera popular cujo fundamento nós entendemos, mas cuja forma não podemos endossar”, disseram os jogadores, cheios de dedos.

“Muitos de nós saímos dos bairros populares e compartilhamos os sentimentos de dor e tristeza. Mas a este sofrimento se soma o de assistirmos impotentes a um verdadeiro processo de autodestruição. A violência não resolve nada.”

Não resolve mesmo, mas parece uma maldição entranhada num dos melhores países do mundo, com uma insuperável combinação de padrão de vida, paisagem, patrimônio histórico, tradição de produtos sofisticados e bens imateriais. Um retrato dessa praga: a “competição” em doações para a mãe de Nahel e para o policial detido por sua morte, “que fez seu trabalho e hoje paga um preço pesado”. Este crowdfunding levantou 800 mil euros em quatro dias.

É possível condenar o destino fatal do jovem que desafiou, inexplicavelmente, a polícia, numa cena que foi filmada, e também se revoltar com os incêndios, saques e roubos que, para ficar em apenas um exemplo, consumiram 5 mil veículos?

É nessa linha que o governo Macron tem que operar, com uma margem de manobra estreita e o risco de perder a mão. Sem contar administrar a polícia, com seus múltiplos sindicatos cujos representantes falam sem parar na televisão e não estão nada satisfeitos, e até a rivalidade tácita do ministro do Interior, Gérald Darmanin, que tem uma imagem de autoridade maior que a de Macron – e ainda a vantagem de sempre lembrar sua origem, como descendente de imigrantes, inclusive argelinos.

A situação começou a refluir no fim de semana, mas com um ruído de fundo, desconfortável e até insuportável para uma parte crescente dos franceses: a certeza de que não será a última vez. Os surtos de violência vão inexoravelmente se repetir e com eles cenas inacreditáveis, como a pichação de um memorial em homenagem às vítimas das deportações de judeus para o dos campos de extermínio, que na França é chamado pela palavra em hebraico, Shoah, e aos combatentes da resistência.

Além da bandeira francesa pisoteada, foi pichada a seguinte frase: “Vamos fazer uma Shoah com vocês”.

Fonte: Veja

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