Todos nós nos sentimos como vencedores do destino, não seus peões tão facilmente manipulados, quando acontece um resgate como o das quatro crianças que passaram quarenta dias na mata fechada da Amazônia colombiana.
Os fabulosos 33 mineiros chilenos arrancados do fundo da terra numa cápsula que tinha tudo para dar errado, em 2010, ou os meninos do time de futebol da Tailândia resgatados de uma caverna por mergulhadores, em 2018, nos impulsionam a acreditar em características humanas admiráveis, como o engenho, a obstinação e a capacidade de sobrevivência em condições inconcebíveis.
No caso dos irmãos colombianos, as quatro palavras repetidas pelos militares colombianos quando tiveram acesso às crianças, num código que haviam combinado com antecedência, resumiram tudo: “Milagre, milagre, milagre, milagre”.
Gustavo Petro, o presidente de extrema esquerda, teve motivos para pegar carona na história que causou comoção nacional, da mesma forma que Sebastián Piñera, o presidente de direita do Chile na época, fez no caso dos mineiros. “São filhos da paz, filhos da Colômbia”, tuitou Petro, destacando com razão a bem-sucedida cooperação entre o batalhão de combate na selva e os indígenas de diversas etnias, conhecedores da mata profunda, que foram voluntários para participar das buscas — e conseguiram o impossível.
Agora, quase inevitavelmente, começaram os problemas. O organismo de proteção à infância está investigando uma acusação contra o pai das duas crianças menores e padrasto das meninas mais velhas, Manuel Miller Ranoque, por abuso sexual e violência contra a mulher, Magdalena Mucutuy.
Segundo havia contado o próprio Ranoque, a mãe sobreviveu durante quatro dias depois da queda do monomotor. Antes de morrer, disse para os filhos que deveriam sair do local do acidente e tentar se salvar.
Agora, há dúvidas até sobre as últimas palavras de Magdalena, atribuídas por Ranoque a um relato da menina mais velha, sua enteada Lesly, de 13 anos, considerada a heroína que protegeu e salvou os irmãos. “Vão embora que vocês vão ver quem é seu pai, saberão o que é o amor de pai”, teria dito Magdalena.
Na verdade, Ranoque estava sendo mantido longe de Lesly e Soleiny, de 9 anos, no hospital onde estão se recuperando. O padrasto afirmou ao jornal El Tiempo, que revelou a história da denúncia, ser uma vítima de falsas acusações da família materna das crianças, avós e tios, agora reivindicando a guarda dos menores.
“Eles querem levar as crianças para, por meio delas, pedir recursos, fazer desordem. Porque é a única coisa que sabem fazer.”
“Neste momento, todas as denúncias, os fatos e as ações de verificação são objeto de análise por parte da defensora da família designada. Não podemos nos pronunciar sobre esse tema”, disse o Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar. A guarda das crianças ainda será definida pelo órgão público.
Ranoque também denunciou que fugiu da região indígena por estar sendo perseguido por uma dissidência das Farc, autodenominada Estado Maior Central. Os guerrilheiros são tão bárbaros que admitiram ter assassinado três adolescentes indígenas recrutados na marra, uma prática hedionda que é um dos motivos de grandes deslocamentos populacionais nas áreas de atuação da luta armada.
Por causa desse horrível caso, Gustavo Petro se viu obrigado a suspender as negociações de paz, uma de suas principais bandeiras. O próprio Petro foi da luta armada, como membro do ERP, responsável por algumas das ações mais dramáticas da conturbada história recente da Colômbia. É com remanescentes do grupo que ele fez o mais recente acordo de paz.
Segundo Ranoque, ele saiu primeiro da área indígena para juntar dinheiro e mandar buscar a mulher e as quatro crianças. Era isso que estava acontecendo quando o tosco monomotor caiu. Ele responsabiliza o piloto — aparentemente não brevetado — por causar a queda do aparelho que estava “sem gasolina, sem óleo e sem manutenção”.
Como proteger as crianças resgatadas na Colômbia da fama súbita e do trauma de acidentes prolongados — além, se assim for comprovado, de um padrasto abusador?
A longa mão do destino pode ser cruel com sobreviventes de casos do gênero. Os mineiros chilenos que viraram heróis nacionais, sendo convidados para palestras no exterior e outros eventos evidentemente muito além do universo onde viviam, reclamam que ganham uma pensão pequena, não receberam indenização num processo contra o governo, foram enganados pelos advogados a serviço dos produtores do filme com Antonio Banderas sobre seu prodigioso caso e, acima de tudo, não conseguem o que mais gostariam de fazer — voltar a trabalhar em minas, uma atividade que “entra no sangue”, por mais estranho que pareça ao resto de nós.
Mais trágico foi o caso de Duangphet Phromthep, um dos doze meninos resgatados por mergulhadores britânicos, parte de uma equipe internacional, da caverna na Tailândia onde passaram dezoito dias presos depois de serem surpreendidos numa excursão pela torrente de chuva que deixou a entrada do local inundada.
Conhecido como Dom, o jovem de 17 anos tinha ganhado uma bolsa da Fundação Zico e estava estudando numa escola de alto nível e jogando futebol na Inglaterra. Em fevereiro passado, foi encontrado sem sentidos na escola e morreu dois dias depois. A causa da morte já foi definida, mas não revelada.
“Encontramos o destino frequentemente nos caminhos que seguimos para evitá-lo”, dizia La Fontaine.
As crianças da selva colombiana, que estão se recuperando bem apesar de terem perdido um terço do peso, comoveram os resgatistas com dois desenhos, feitos por Lesly e Soleiny, mostrando o cão Wilson, o pastor belga que encontrou, sozinho, as crianças, mas está desaparecido.
A busca por Wilson continua — e pela paz de espírito que as quatro valentes sobreviventes merecem.
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Fonte: Veja