Ao aportar no centro de Mendoza, a duas horas de voo de Buenos Aires e próxima à fronteira da Argentina com o Chile, não há dúvida sobre o assunto que move a cidade: vinho, e dos bons. Como em um parque temático afeito a adultos e não a crianças, até as fontes que ornam as praças são tingidas de tom rubro. A mescla de solo fértil e clima seco, com 300 dias por ano de sol, vem resultando em boas safras de uvas como cabernet sauvignon, tempranillo e malbec — estas, originárias da França, encontraram no vale emoldurado pelo Cerro Aconcágua, a maior montanha do mundo fora da Ásia, um ambiente ideal. Em meio à exuberância dos elevados picos nevados, os turistas desembarcam ali prontos para rodar algumas das quase 200 vinícolas abertas à visitação nos arredores.
Os brasileiros sempre seguiram a rota mendocina, como se diz por lá, mas nunca com tanta sede (com o perdão do trocadilho). A procura é tanta que, segundo dados oficiais, pela primeira vez eles ultrapassaram os chilenos e se tornaram campeões entre todas as nacionalidades registradas nestas bandas do planeta. “Vejo ainda muito espaço para crescer no mercado brasileiro”, diz a secretária local de Turismo, Nora Vicario.
Um dos motores para o atual afluxo de gente vinda do Brasil são os preços convidativos. Enquanto na Europa ou nos Estados Unidos o ditado “quem converte não se diverte” se faz inescapável diante da desvalorização do real, na Argentina, engolfada por uma crise em que o peso virou pó, os brasileiros fazem a festa. Uma viagem de cinco, seis dias incluindo passagem aérea, hotel quatro-estrelas, passeios e refeições regadas a respeitáveis rótulos locais pode sair em torno de 6 000 reais. “Aproveitamos as melhores comidas e ótimas safras sem ficar o tempo todo fazendo conta”, lembra a catarinense Gabrielle Oliveira, 23 anos, que viajou recentemente com o marido, o gestor de finanças Eduardo Oliveira, com quem cruzou vinhedos de bicicleta. A alegria proporcionada pelo câmbio favorável se revela, por exemplo, em uma garrafa de Gran Enemigo Gualtallary, cuja vinícola é tocada pelo badalado enólogo Alejandro Vigil: se no Brasil custa em redor de 800 reais, nas prateleiras de Mendoza pode ser encontrada pelo valor equivalente a 150 reais.
À medida que os brasileiros foram se tornando mais frequentes, brotou um nicho de agências especializadas neles. E o enoturismo predomina, atraindo desde leigos que se espantam com as baixas cifras por taças de qualidade (ainda que não supere a de franceses e italianos) até uma clientela versada no tema. “Obedecendo o peso permitido, dá para trazer umas catorze garrafas na mala, e muito brasileiro faz isso”, afirma o empresário Rafael Jesus, CEO da agência Suntrip Brasileiros em Mendoza. Em vinícolas de alta procura, como a El Enemigo e a Zuccardi, português é quase que a língua local. Na Zuccardi, aliás, por duas vezes consecutivas a melhor do mundo na premiação inglesa World’s Best Vineyards (e hoje hors-concours), um menu de quatro etapas, à base de cortes de carne à moda argentina e harmonização com rótulos de notória excelência, gira em torno de 500 reais.
Nesse ritmo, o volume de brasileiros já se igualou aos níveis pré-pandemia e deve crescer 20% neste ano, segundo o Instituto Nacional de Promoção Turística da Argentina (Inprotur). Um bom empurrão veio da ampliação dos voos diretos — na alta temporada que se avizinha, serão diárias as saídas de São Paulo e Rio de Janeiro sem escala em Buenos Aires. Por agora, o clima no charmoso vale, que ocupa o posto de mais importante produtor de vinhos da América Latina, exige casacos resistentes: os termômetros não costumam passar dos 15 graus e, à noite, podem baixar para gélidos 1, 2 graus.
Não custa lembrar que nem só de vinhos vive Mendoza. “É um destino que também oferece natureza e aventura, o que atrai os brasileiros”, diz Natalia Pisoni, do Inprotur, justamente encarregada de fomentar a vinda de turistas do país vizinho. Além do ecoturismo, que inclui rafting, cavalgadas e mountain bike, o cenário nevado tem atraído um curioso fluxo de noivos do Brasil aos altares de Mendoza (em seis meses, cinquenta uniões foram celebradas sob o sol de lá). “Quem vem quer voltar, e muitos, como eu, ficam de vez”, constata o alemão Michael Halstrick, CEO da Bodega Norton e herdeiro do império de cristais austríacos Swarovski, que se casou com uma argentina e está por lá desde os anos de 1990. Histórias assim são contadas a todo instante aos pés dos Andes, sempre embaladas por uma generosa taça de tinto.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844
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Fonte: Veja